Inscreva-se para acompanhar as publicações deste blog.

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Pequenos textos

1. Escovou toda a boca. Não só os dentes. Tinha tanta pressa e fazia tanta força que as cerdas atravessavam a gengiva numa truculenta luta de esgrima. Iria a uma consulta médica e sequer havia atraso para tamanha comoção. Apenas queria ir e torcia para que lá uma força maior e mais conceituada timbrasse sua invalidez.

    Talvez os dias todos fossem feitos por ações rápidas e opacas. Passava o café como se a água fosse transfusão de sangue; comia o pão como se a massa concedesse mais um instante sobre a terra, e o corpo aprendeu a se ajustar com tamanha adrenalina - por cooperação ou coerção -, pois mantinha todos os fios vermelhos, pálidos e lisos na perfeita geometria em direção ao chão.

    Sua jornada médica, em outro caso, aconteceu aos pulos. Nunca fora. Não era uma preocupação. A vida regrada das Ciências da Computação mantinha dedos interligados ao fluxo dos olhos, ao comando do cérebro, a uma ordem sensacional de diligência perante a máquina. Eventualmente alguma dor chegou. Chegou e se alastrou como uma queimadura por toda a pele sem tecer marcas. Apenas doía e valia a palavra, porém esta não era uma pessoa de parir suas ideias de mundo em grandes gracejos vocálicos. Foi a troca completa, virou-se a casaca ou coisa do tipo. Buscava agora o pleno descanso e obteria isso mediante o carimbo sobre o receituário.


2. Tenho certeza de que foi você quem desgraçou com meus feromônios. Primeiro pensei se poderia pôr meu peso sobre o seu, ajoelhado sobre as coxas. Era uma inutilidade, presumo. Nos tornaríamos uma balança e então com controle o tramaria com um cilício. Faria junto, não seria um exercício sádico. Acho que me devora a ideia da devolução. Eventualmente teu peso me rasgaria as coxas. Cintos marcando os espaços do corpo que poderiam ser estrangulados e, visível para além da gola, público no pescoço, a couraça de uma coleira nos armando com um compromisso.

    Veja, ainda me envenena a mente tais fantasias, que se devotam numa conversa de punições. Cilícios, deslizes e estrangulamentos em camisas brancas passadas e abotoadas. Foram más conversas, más percepções. Não importa, não daria em nada mesmo. Porém gostei de saber e me mordi ao, propositalmente, ensanguentar odiosamente a sua moralidade. Porque não era uma balança até então, não íamos e voltávamos compensando o equilíbrio. Era um bloco maciço, um peso de porta.


3. O jeito como ele limpava, com muito cuidado, aquelas pedrinhas, passando a escovinha velha em cada curva ou reta e jogando a poeira para fora. Fazia isso girando, puxando a blusa alongada pelo tempo a fim de cobrir a divisão dos montes. Era uma cena cômica. Eu pensava: o que é que ele estava com tanta propriedade cobrindo? De quem ele escondia tamanho tesouro? Mesmo entre nós não havia exatamente como olhar. Ele estava sempre muito ajoelhado e eu aqui de longe, por detrás das janelas, acompanhando abestado. Seria do Senhor, Grande Deus? Que graça esta. Cobria seu cofrinho de Cristo, do Grande Olho, daquele que olha lá dos céus. E talvez estivesse certo na sua oferta de modéstia. Não queria dividir o pequeno termo de corpo, a possível sensualidade. Tampouco ofender, pelo comum ao sujo, ao gasto, ao mau visto - a bunda! - do onipotente Senhor que nos guarda.


4. Ao respirar, o ar se contorcia com peso dentro dos pulmões, num exercício de querer expandir e estourar aquela carne, sem valorizar qualquer outro caminho para fora do corpo. Todavia era pertinente respirar. Bater o coração. Continuar vivendo aquela vida sem propósito. Quem define o propósito da vida? Se perguntou e a voz ressoou sem resposta. No entanto o cérebro era histérico e sem uma resposta procurava outra pergunta. Era um caminho de caminhos sem saída. Assim, ele abaixou a cabeça, a apoderou com a mão dominante e se perguntou: que rumo tomo? Ambas as perguntas pareciam exigir a intervenção de alguém.

    O som do cérebro, uma de suas lâminas, às vezes era como vassouras varrendo ruas de pedra.

 

5. Quando eu estiver morto, me enterre com algo para ouvir. Fones de ouvido e um álbum selecionado tocando indefinidamente. O espírito escuta? O corpo ainda compreende os sinais de vida lá fora? Não sei, ainda estou vivo, vivo demais para te responder. Faça suas perguntas, porém. Posso ouvi-las. Quero, quero sim. Me dê a mortalha, me dê a gaze para morder durante o ataque berrante convulsionado no chão. Não é mais isso? Mudou? Entendo... Cubra o chão, acoberte a cabeça e a deixe bater. Faça silêncio enquanto golpeio a cabeça, enquanto o recheio da torta está quente e macio (deixe a música para depois!). Se você fatiar, escorrerá no prato. Que linda visão! A nuvem anã de vapor que se abre como cortinas que preparam a imagem do desejo para as cerejas que descem o córrego na massa dourada que é úmida por dentro e prestes a esfarelar por fora.


6. Sejam comigo pessoas macias. Não quero mais o toque áspero. Sou, já, de pedra. Teu toque estriado me tirará uma fatia. Fina fatia microscópica, de breve a breve poeira. O que há dentro de mim afinal? Veia e sangue? Linfa e plasma? Puro vazio. Sou um ser quente, mas frio diante da água que me cerca. Ela também me arranca, de maneira carinhosa, fios e tecidos.

    Sejam comigo pessoas macias, peço por favor e tenho medo de ser ignorado neste pedido. Não cruze minha linha santa. Não invada este território. Há na placa sobre a porta de madeira (nova) agarrada ao muro (que se despedaça): não entre, não cruze, não jogue lixo. É recente – somente este histórico engraçado. Como cuidarão deste lote? São as regras para todos ou a ordem pula aquele que prega a placa na madeira? Quiçá o mundo seja um benefício imediato para um e todos os outros rodando o entorno pela conformidade. Não tem como fugir. Vá contra a lei da fúnebre maioridade e levarás um soco no olho. Perderás os dentes. Perderás o limite que não queres que cruzem. Cruzarão? Se cruzarem, tomarão prazer? Sentirão o calor da pedra afogada? Esperarei por respostas. Aqui apenas anseio por cenários. Esperarei por saber de meu plasma, sangue, veias, face. Debaixo da face deve haver outra face. Esta talvez me revele para o mundo. Esta talvez me revele já no fundo d'água, mergulhado, abaixo da linha do mar, onde meu ventre estará frio diante da água que me cerca. Em outro mundo, outro mundo.


7.  Gargalhadas natas e outras nervosas se uniam em uma única erupção.

    Caiu feito um tomatinho muito maduro e se esborrachou no chão. Morreu a granular criatura e aos nossos olhos que observavam de longe só sobrou o dó para guardar na língua e saborear em alguma história com aqueles que não estivessem presentes no espetáculo.

    Era fúnebre, certamente, mas era este o propósito. Alguns morriam com a espada na garganta, outros apunhalados dezenas de vezes. Este morreu se arremessando de um dos balcões que rodeavam o pátio, do cômico ao terrível.


8. Não quero mais falar sozinho. Este baralho de palavras, assuntos, vontades vociferadas existe às pampas porque não é gasto, e mereço gastá-lo. Gaste-o e me gaste se puder. Todo o oco. Todo o núcleo pesado de líquido arenoso, grosso nas colheradas. Retire-o. Retire-o com todo o esforço que tens. Verás as diferentes camadas, o pouco que não se mistura por completo. Raspe o conteúdo deste planeta e o deixe à espera no universo.

    Seja honesto, arquiteto dos ares. Esteja, acima de tudo, confortável comigo. Compartilhemos prazeres. Observai-me no meu prazer do diálogo. Permita que eu encontre cada casa vaga agora que deixei de estar muito cheio. Como um colar de miçangas, arranjarei todas sob um mesmo fio de nylon.


9. O lindo corpo inflado, macio e leitoso, brilhante do óleo que discernia o calor do verão. Era um espetáculo, cada coisa em seu lugar. Milimetricamente. O vento feroz da noite praiana mantinha o corpo frio, que mesmo resplandecendo as pequenas partículas de brilho encontradas no espaço e atracadas na pele em grudes maternais, uniam-se para a cena perfeita da musa matriz que me seduzia com olhos de histórias longínquas e conhecimentos passados. A carne iria eventualmente se entrosar nos cubos privados, enquanto sob a lua como claraboia vivíamos uma dança conjunta e desajeitada. O corpo delicioso de sobremesa ao passo da dança, sem pensamentos, sem remediação; a mão carregando a lata de cerveja quente e amassada com seus poucos mililitros que pediam socorro. A falta de ângulo, a chave tilintando. Funcionava, porém. Pelo sobre pele nua. Qual era o sentimento? O combustível? Não me via lobo e nem me faria voraz, entretanto acendia uma bruxuleante flâmula de farol em noite enevoada; libido ocupando o coração como gordura, no aguardo para desatar em satisfação.


10. Aconteceu. Aconteceu de novo e novamente aconteceu comigo sozinho, gerando aos entraves o potencial de vocês como sempre me desacreditarem.

    Fiquei absorto. Minha mente vagueou e perdi o encargo dos acontecimentos. Tinha de fazer algo e, por me perder, algo importante e necessário para os acontecimentos adiante foi recusado. Perdido. Destruído. Destituído. Assim tive de começar tudo novamente e me quebrou como a escultura de açúcar que não está no ponto de total solidez. Cacos e cacos, sem o demérito de ferir feito vidro. É só açúcar.

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Correio

1. Eu tenho lido e pesquisado. Escrito: pensamentos, textos, artigos. Descrito e revisto. Desenhado, pintado. O mínimo e o máximo. E continuo como um rio sem movimento, com foz no eterno aguardo do deságue. Não estou mais esperto e mantenho meu desgaste constante de estar muito certo do meu não saber vagar por aí. Não calha seguir, apesar de seguir seguindo. Bem...

    - Não. Não estou lidando com nada... Nada mesmo, nenhum peso sobre os ombros. Porém... Me deixa atento. Este nada muito significa. - a metade do copo preenchida com ar assusta e fascina.

    Quero me despedir deste planeta. Adoro a hora de ir embora. Você se despede de casa para ir à rua, se despede da festa quando se está cheio. Estarei cheio no fim dos tempos? Minha visão de despedidas é animadora e não me despeço dela por outra que não contenha sucessos absolutos. A dúvida rodeia, porém não entra. Se entrar, irá se despedir de seu espaço, sua forma e seu corpo, pois aqui será exposta como uma certeza. Este barco navega sobre o véu plástico. Balança e chacoalha sem medo de afundar. Gira às tonturas, entretanto sem a realidade do medo-piloto que só o mar pode suportar. Este oceano é puramente construído numa linda maquete que pode ser vista de fora e por enquanto só pode ser vivida por mim. Uma hora, quem sabe, abrirei o estúdio ao público. Talvez então este barco sobre o plástico não será novidade, mas a porta aberta convidará o outro a despedir-se de fora para entrar.

 

2. No ensino fundamental gostava de uma garota que me lembrava Marisa Orth. Não a apreciavam pela beleza, o que era uma grande incógnita para mim. Muito menos, ela não me apreciava, embora em algum momento de extrema dúvida e necessidade trocamos nossos números de celular e passamos a comunicar via textos curtos. Era limitada a situação. Diferente dos outros, não tinha a liberdade imaginária (imaginária, pois imaginava que eles tinham) de trocar infinitas palavras nos sistemas recém atribuídos aos miúdos de nossas idades que burlavam o pano corporativista que vigiavam seu funcionamento. Bem, independentemente das independências da memória, brevemente teci um relacionamento de palavras. Fui um jovem avante e vejo com carisma o quanto isso não significa nada.

    Pois ela me lembrava Marisa Orth e isso não era deliciado pelos outros rapazes. Que pena. Deveriam ter olhos atentos. Toda essa conversa agora é feita sem nenhum teor proibitivo, apenas relaciono o reconhecimento da beleza das faces conhecidas. Devo admitir, no entanto, o furor daquela época. Pezinhos vibrantes na troca maquinal de mensagens, todas mal interpretadas na promessa de pequenos romances. Hoje, no entanto, avalio a outra face da rejeição de nossa Orth-sósia que não golpeava corações com flechas de pedra por suas beirais semelhanças à estrela da tevê. A gente sabe que na vida adulta tudo se revela. A pequena beleza se magnifica. A grande feiura encontra seu lar. Alguém com apetite irá desmontar a mandíbula em prazer, revelando caninos aflitos com gotas gordas de saliva almejando o corpo-refeição. Come-se, é comido, acena para a sobremesa e repete a refeição.


3. Ele olhou para o céu por um momento, já cansado com a vaguidão daquele seu dia; seus sentimentos descoordenados como notas átonas de um bloco sinfônico que fora destruído e reconectado; pensava se havia porquês para ser complacente sem desistir do combate - ou era a única função da guerra debulhar o homem à sua matriz?

    Acima, a figura do anjo o olhava de volta. Vestia armadura feito ele, sem suor ou tremor diante do peso. Mesmo que não pudesse conjugar naquele instante como podia carregar aquelas cotas de malha e placas de ferro decoradas com pequenos nós de ouro, tinha a certeza de que aquela criatura flutuante não dispunha de esforços físicos em sua existência.

    O anjo falou e ele ouviu, apesar da reação ou da mensagem não moverem os lábios de ambos:

    - Que desespera a noite que cobre o reino. Que desespera a mente que te cobre homem. Que exerça a tua dança, no passo célere que indico, no ciclo contínuo da guerra que funda este povo.

    Não havia temor, mas desgosto, pois a mensagem era clara como todos os anúncios dos céus e não havia inaptidão para discordar: iria lutar a guerra para sempre, não porque há valor nesta, mas porque assim foi escolhido.


5. Tornar-me-ei concreto. Muralha, paredes, pistas de skate. A mão que lavra passará sobre mim, interagirá e retornarei com um frio instante. Não posso muito oferecer além do espaço, mas no espaço nos fazemos gente. Oferecerá seus pés sobre solas, sob trajes e serei caminho para fugir, correr, largar (...).

    Não, não se faça cíclico. Faça um caminho para frente, em direção ao futuro. Sê caminho e você por mim encontra o desconhecido. Sê plano e por mim você atravessa a descoberta. Não seremos mediados, pois correntes. Velejo sólido, sou concreto.


6. Naquela noite ele tocou em um assunto que reconheci, porém não prestava atenção diante da chuva para policiar minha resposta:

    - O molestador?

    - É... - soltou como vapor disperso, entre risadinhas desconfortáveis.

    Ele reconhecia a pessoa e a sentença, pelo visto, e me faria em frente ponderar se isso também o incomodava (numa memória sacrificante como garras de aço sobre a pele), entretanto voltou ao ponto inicial, o outro professor. Disse algo do tipo:

    - Ah, ele é joia! Aprendi muito com ele.

    A conversa não durou muito. Não sobre esse assunto, pelo menos, apesar da natureza entrecortada de todos aqueles picos de palavras na madrugada. Estávamos separados. Um grupo, uma dupla, alguns sozinhos. E mesmo o mais sóbrio daqueles só poderia ponderar sobre os acontecimentos tecidos em seus breves momentos de solidão.

    Pensei, em algum instante: teria aprendido mais naquelas aulas se não estivesse envenenado pelos meus próprios propósitos individualistas? Muito gostaria, é claro, como todos os que se veem no reflexo d'água ponderando a nova mente no corpo da lembrança. Contudo... Não me valeria o esforço de mudar vírgulas. Foi como tinha de ser. Se foi ruim - até onde me coube -, foi por me caber a atuação. O ator em seu eterno progresso, talvez. Mas essa visão que ocupa a córnea de sangue... Bem, que tenha cuidado. Não esqueça, pássaro, que a sociedade não é só você; tampouco que por não prestar atenção esteve sendo autêntico. És autêntico em sua falsidade. Todos somos. Dançando com asas cheias de óleo à procura do encantamento externo. Não se preocupe. Faça o externo como quiser. O reflexo de volta para o quarto, até. A janela, a folha, a outra andorinha (também).


7. Meus feromônios se transformaram radicalmente. Minha fragrância corporal mudou, de um tom terroso e fresco, harmoniosamente salgado (como grama amassada em sal e carvão) para algo doce ralo, desconexo e glicerinado, como o suco de uma laranja Serra D'água e sabonete neutro na pernoite.


8. Estou sentindo o espírito deixar o corpo... Não, não ria da minha descrição. É como se... Na frente dos meus olhos houvesse uma lente refrativa. Tudo um pouco mais distante de mim, a milésimos de segundos do toque. Temo que irá piorar. Mais demora e mais tempo. Maior distância. Menos noção do meu eu sobre meu próprio corpo, abarrotado pela ideia de ser uma espécie de luz ou de matéria atracada de muitos blocos leves em conjunto uníssono, que comanda um maquinário.

    - Quando me toco, - prossegui, as falas curtas e os pensamentos já mesclados num falso sincero monólogo - percebo-me menos.


9. O mundo irá me bater. Sem dó. Somente lutas covardes. Apanharei sorrindo, porque é belo o sorriso ensanguentado. Apanharei calmo, pois odioso me moverei demais e baterei por conta própria nas paredes. Apanharei em sequência, dias e dias, até que faça sentido o ritmo e eu sinta falta disso quando faltar. Irá faltar, e abrirá a porta da cela o agente que carrega a solidão. A noite vagueará na memória, espero que positivamente, contudo não posso descrever meu futuro com certeza. Espero que sim. Ó como espero. E espero que se repita, mãos frias sobre o vento, com olhos fixos naquele que me desejou por um instante.


10. Não. Pensei que era assim. Que se tomava a direção do carro colocando a mão no volante. Que se propunha a chegar em algum lugar e então se chegava. Não imaginei a estrada como mundo. Que no trajeto tinha resto. Tinha gente, tinha carro, tinha gente dentro de carro. Que a estrada era viva e a vida nem sempre era bonita. Nem todo mundo é atento e nem todo motorista dirige com a mão no volante. Porém eu dirigia, e vendo um mundo maior passei a dirigir olhando tudo. Olhei demais, olhei pra lá. Olhei até perder o horizonte. Perder a direção. E ser assim parte daquele resto desatento, que provoca acidente. Que acidentava a rota. Que roteava a norma.