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sábado, 30 de março de 2024

Transcrição

1. Talvez seja mesmo um pensamento convoluto. Não sei de quem. Ou meu ou de você. Algum pensou no outro, talvez os dois pensaram simultaneamente, daí os relógios (algum relógio no mundo) fizeram questão de marcar o momento idêntico e nos revelar. Não muito mais que isso.

    Que semântica idiota. Que perda de tempo abobalhada. Que rubor na face. Carinho pelo clique e pelo claque, via telepatia e de olho no objeto.



2. Esta é uma das mudanças na qual me recuso a entender, a de não poder - delirar, fugir. Qual é o meu ganho em encarar a todos com a face limpa e um escudo de papel machê? Planos são, subjetivamente, organizações, enquanto o que se habilita aqui nos não dizeres parece ser sem ordem ou propósito.



3. Diga, Misericórdia! O santo se energizou nos cantos e agora a paróquia sentia o compromisso que ditava a reza. Talvez pela primeira vez os incautos tenham de fato louvado suas palavras. Não havia somente sabedoria em repetição: o que se conhecia por memória. Ditou-se então a Guarda Santa, a crença de um lugar melhor e sereno para se habitar no mundo.

    Aquelas senhorinhas porém pensavam com tamanha experiência de vida: deveriam sair dali? A calmaria, o pleno vácuo do vacilo humano, lograva aquela paróquia? Perguntas e perguntas e perguntas. Este autor sempre se perde nelas. Assim como os de terno se perdiam em suas próprias perguntas: por quanto tempo permaneceriam ali? Por quanto tempo durariam ali? Ou era todo este um compromisso eterno, de eterna sede e eterno jejum? O sofrimento permanece na certeza da vida eterna, a eles era claro. Nunca se esperava do Santo uma troca de quociente exato.

sexta-feira, 29 de março de 2024

O Cheiro do Corpo

    Não consigo conviver com o meu cheiro. Meu cheiro de gente. A existência palatável: gosto, olfato, som. Por que se ser humano é extravagante? Ocupa a matéria. Ocupa o espaço. Destrói ao toque porque se faz cheio. Enche. Enche, preenche o gargalo. É a má digestão do que não come.

    Tenho retirado lascas de pele com um estilete. Não faz bem, porém me serve de linguagem. Você lê? É capaz de ler este poema? Penso que, no ônibus, notei que nos pulsos dela cicatrizes demonstravam o passado. Não era nada grotesco, apesar da descrição assim coincidir. Provavelmente alguma traquinagem de criança que prendeu mãos no metal. Marcou pra sempre, com felicidade ou infelicidade. Isso, porém, não era o foco deste meu relato, entretanto agora tomou conta daqui. Que bom. Que assim seja. O meu cheiro de gente nada importa para outra gente. Gente e gente, cada um é gente só. Com suas próprias existências palatáveis e raízes temporais de vacinas tomadas, mordidas de cachorro, raspagens no estilete.

    Ela muito aparece em meus pensamentos. Na verdade, ela é parte de muitos. Muitos que aprecio como divindade, mesmo sabendo dos prós e contras na pequena vivência urbana que extraíamos coletivamente. Sinto saudades tantas. Não de seus cheiros e gostos. Talvez de seus sons. Imagens, também. Quer saber, talvez de tudo. Quero saber de seus cheiros e gostos, por que não? Quero palmas das mãos coladas, medir tamanho como a família imaginária faz. "Olha você e olha eu, que diferença". Quero acreditar em voz baixa que somos todos irmãos e que há fraternidade em todo amor, que devo me esforçar para conviver com meu cheiro. Meu cheiro de gente. Percebo-o porque tenho cada dia mais deixado de ser um ser. De ser ser humano, ser parte do coletivo e, portanto, da unidade. Deixei, é claro, de ser parte deles. Restam só as memórias e nenhuma tentativa de contato. Tudo é possível se se correr atrás, dizem, porém certamente devemos nos atentar às regras da moralidade. A alguns se deve dar a distância. A recuperação própria. Talvez eu esteja me dando isso, mesmo sem saber. Se possível, quero saber. Conte sobre isso quando nos encontrarmos.

    Cada nova lasca de pele que cresce é nova, de nova cor, nova textura e novas bactérias vívidas ao redor. A pessoa, espera-se, no contexto novo, é a mesma. Nunca se é e ainda assim é algo constante... vá entender. É uma conta de multiplicações e divisões integrais. Tem resultados sólidos, matemática fatal, comutada pelos senhores que observam do estado máximo este planetoide. Com algum controle vivenciamos a pequena existência, apenas exprimindo e contorcendo estas felicidades e tristezas. Analisando-as, ponderando-as, recusando-as. Fazendo a digestão. Digerindo-as após o alimento. Percebendo a má digestão no corpo. Incorporando o jejum.

Creme do Corpo

    Vagando, vagando, vagando estou. Vagando, vagando, vagando aguardo.

    O creme do corpo, saído da lata. Alma pura e soberana impressa na carne. É musculatura. Forma caminhos sob as ranhuras. Conecta e conversa. Você é corpo. Vaso cheio de espírito. Vida e morte esperando receptáculos.

    O creme do corpo, saído da lata. Carne fosca e deliciosa. Sorvida por outrem. É musculatura coberta pelos panos de pele. Pele e pelos, arqueados sob o vento. Conecta e conversa. Dá voz pelo movimento. Expira e inspira. Você tem voz. Vaso recheado de informação. Vida e morte esperando atenção.

    O creme do corpo, saído da lata. Calor que manifesta a textura, liquidez, tempo e espaço. Esfria e esquenta, faça-se a vida. É musculatura. Procura mover-se nos caminhos de fora, sentindo de lá a presença do mundo. Grita-se. Conecta e conversa. Grita toda a dor que carrega. Carrega e leva no seu caminhar. Vaso cheio de dor. Vida e morte aguardando fusão.