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sexta-feira, 29 de março de 2024

O Cheiro do Corpo

    Não consigo conviver com o meu cheiro. Meu cheiro de gente. A existência palatável: gosto, olfato, som. Por que se ser humano é extravagante? Ocupa a matéria. Ocupa o espaço. Destrói ao toque porque se faz cheio. Enche. Enche, preenche o gargalo. É a má digestão do que não come.

    Tenho retirado lascas de pele com um estilete. Não faz bem, porém me serve de linguagem. Você lê? É capaz de ler este poema? Penso que, no ônibus, notei que nos pulsos dela cicatrizes demonstravam o passado. Não era nada grotesco, apesar da descrição assim coincidir. Provavelmente alguma traquinagem de criança que prendeu mãos no metal. Marcou pra sempre, com felicidade ou infelicidade. Isso, porém, não era o foco deste meu relato, entretanto agora tomou conta daqui. Que bom. Que assim seja. O meu cheiro de gente nada importa para outra gente. Gente e gente, cada um é gente só. Com suas próprias existências palatáveis e raízes temporais de vacinas tomadas, mordidas de cachorro, raspagens no estilete.

    Ela muito aparece em meus pensamentos. Na verdade, ela é parte de muitos. Muitos que aprecio como divindade, mesmo sabendo dos prós e contras na pequena vivência urbana que extraíamos coletivamente. Sinto saudades tantas. Não de seus cheiros e gostos. Talvez de seus sons. Imagens, também. Quer saber, talvez de tudo. Quero saber de seus cheiros e gostos, por que não? Quero palmas das mãos coladas, medir tamanho como a família imaginária faz. "Olha você e olha eu, que diferença". Quero acreditar em voz baixa que somos todos irmãos e que há fraternidade em todo amor, que devo me esforçar para conviver com meu cheiro. Meu cheiro de gente. Percebo-o porque tenho cada dia mais deixado de ser um ser. De ser ser humano, ser parte do coletivo e, portanto, da unidade. Deixei, é claro, de ser parte deles. Restam só as memórias e nenhuma tentativa de contato. Tudo é possível se se correr atrás, dizem, porém certamente devemos nos atentar às regras da moralidade. A alguns se deve dar a distância. A recuperação própria. Talvez eu esteja me dando isso, mesmo sem saber. Se possível, quero saber. Conte sobre isso quando nos encontrarmos.

    Cada nova lasca de pele que cresce é nova, de nova cor, nova textura e novas bactérias vívidas ao redor. A pessoa, espera-se, no contexto novo, é a mesma. Nunca se é e ainda assim é algo constante... vá entender. É uma conta de multiplicações e divisões integrais. Tem resultados sólidos, matemática fatal, comutada pelos senhores que observam do estado máximo este planetoide. Com algum controle vivenciamos a pequena existência, apenas exprimindo e contorcendo estas felicidades e tristezas. Analisando-as, ponderando-as, recusando-as. Fazendo a digestão. Digerindo-as após o alimento. Percebendo a má digestão no corpo. Incorporando o jejum.