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sexta-feira, 12 de abril de 2024

Ultrassom

1. O meu ventre. No meu ventre. O meu ventre...

    Assumo que com meus olhos só posso encarar o fora.

    - Toda vista é representação do que o fora me fornece. 

    - E a ultrassonografia, Senhor?

    ...

    O meu ventre. Sim, o meu ventre. No meu ventre, que o Doutor lambuza com gel, se cria imagem.

    - A imagem é o fora, sim, de algo de dentro. Que o fora me oferece nesta tela azul.


2. Com o cano mergulhado na garganta. Ó sensação ruim! Ruim e prazerosa. Prazeres devassos que o Doutor magrelo me ofereceu por uma sedação malfeita. Senti na garganta o cano recortar a carne mole. Que surpresa! Não me lembro – e portanto não posso comunicar com exatidão – se o sangue que não passou pela língua tinha gosto.

    - Há gosto na hemorragia?

    - Não sei te dizer, Senhor.

    Enfim, enfim... No fim do cano se arrastava uma câmera. Um ultrassom? Um veículo! Talvez este quem me cortou os tubos humanos. Figura agora gente por trás de minhas palavras. Para chegar no esôfago. Era um Ecodopplercardiograma Transesofágico. Ver imagens do meu coração, de dentro para dentro para fora.

    Bem, eles viram. Não pude exatamente me mexer e naqueles instantes fingia que a sedação servia a meu favor.

    - Você pôde ver meu coração, Caro?

    - Não exatamente... Círculos e pontos, números como coordenadas. Tudo pulsante. E mais... - ... - os cabelos louros da Assistente ficavam na minha frente.

    No fim sequer soube se me trouxeram imagens... Ou se as entendi naquela hora.


3. - Vai ver nós sejamos burros.

    - É mesmo?

    O ventre burro. Burro, burro, parte de um ser equivalente. Mas talvez... com suas poucas preocupações se comunica com o ser Burro que o carrega. Meu ventre. Eu, burro.

    Assumo que o que ouço e sinto é o que não posso ver. Experiência nova, sólida, coisa demais para além da visão. O dentro. O dentro da barriga.


4. Na maca do consultório sinto o gel frio sendo espalhado pela barriga. Olho pra cima. Meu Assistente olha pra mim e a Assistente do Doutor olha para a tela. Imagino que se houvesse maior nudez este encontro seria mais íntimo. É necessário intimidade em consulta médica ou isso é contra a moral acadêmica?

    É outro dia e a lembrança do ultrassom de dentro para fora zapeia o cérebro como quando se erra a costura e acerta o dedo despercebidamente. Não é o caso daqui, porém lembranças sempre perturbam o homem. É a idealização delas. É o trabalho das lembranças.

    - Trabalho interessante. - foi solto no mundo e imediatamente mal entendido.

    - Vejo muita gente todo dia. Uns melhores e uns piores.

    Vê-se. Vê-se, penso, o que o fora oferece. Uns melhores e uns piores.

    A barriga não vê, assumo. Ventre, quero dizer. Vamos dar títulos melhores. É o que posso oferecer como moeda de troca a essa parte de Bicho que carrego. Que me carrega. Mais de um terço do corpo.

    O ventre sente. Infinitamente superior. Sentir carrega além do tempo, e o que me carrega carrega o sentimento.

    A consulta não durou muito. Era rotina para meu problema. Um peso extra ao cotidiano: peso que durava tempo e tempo que me fazia olhar para o gesso do teto enquanto sentia o frio se estendendo pelo meu morro com umbigo. Pensei nisso desta forma pois quando a Assistente do Doutor me limpou com folhas finas e ásperas de papel, um globo gelatinoso se ocupou do meu espaço. "Uma piscininha, Senhor!" comentaria meu Assistente. Total assombração me tomou agressivo à procura por uma dessas folhas finas e ásperas, como quem quer tomar todas as ações de uma empresa.

    Espero que não tenha sido essa a impressão da pobre coitada - Não, não me importaria por tal. Vê-se ali muita gente todo dia. Uns melhores e uns piores.

 

5. O meu ventre. No meu ventre. O meu ventre... Este ventre que não via se comunicava por outros métodos. Grunhia, tremia, vibrava. Sentido e sinestesia.

    A visão, do fora, ainda muito me era importante naquele instante. Era procurado entender cada coisa que no ventre cabia - seus grunhidos e sensações - à procura de me entender. Minhas dores e meus tremores, o que via e o que engolia.

    Era muito bárbaro tomar por assim a vida. Em seus limites. Ainda mais bárbaro, do próprio lutador, estremecer esses limites até que se fundissem.

    O de dentro dado ao fora junto ao que de fora era entregue a mim. Equilíbrio, quem sabe, ao perder estes na tela azul do ultrassom.