Inscreva-se para acompanhar as publicações deste blog.

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Lamento

    Aos 30 anos o corpo tinha peso inexplicável ao dos 20. Os braços suspendiam queimadas sem deixar rastros. Percebi que a cada ano éramos mais bonecos articulados do que gente, pois cada junta tinha seu nome, sua função e sua disposição a aparentar. Você logo era possuidora, observadora – de si e de cada parte contida em si. Cada fresta e cada nexo do corpo. Cada alelo e cada célula. Cada dor a seu favor.

    Mas não se era conhecedora da própria vítima. Se não era antes, enquanto gente, seria agora enquanto invólucro articulado? Em vez de se resfriar na sabedoria e conectar os pinos, novos pinos se formavam. Mais profundos, acertando nervos e veias. Cáusticos sem acomodação.

    Foram inúmeras pílulas de nortriptilina e comprimidos de amitriptilina. Muito além do que comportava meu peso. Ainda assim demorou alguma certeza de tempo para irradiar tremores, vômitos e convulsões.

    Você era e eventualmente deixava de ser, como recentemente, de maneira efervescente e bela, no exame de endoscopia em que fui sedada pelas narinas. Estava ligada e deixei de estar, feito um televisor em stand-by.

    Agora entretanto não tinha o acordar.

    Essas palavras todas são códigos. Despedi-me. Flutuava massa cinza pelo ar, diante dos prédios e abaixo das nuvens. Sem rumo e sem função. Sem mérito. Nenhum valor. Sem tristeza ou vitória, você não é mais um critério social.

    Descompensei-me do mundo e não há referência abaixo, sequer acima. O código que lhe fito como uma flecha irá expirar. Sem ver o Sol, Vênus ou a estação espacial. Sem assombrar a lápide no cemitério ou sequer reconhecer aquele que usa os trapos dados aos brechós. Sem vigência de língua, tempo, matemática. São todos didáticos, e o didático agora não lhe cabe. Atravessa sua massa cinza sem valor. Existente e incompreensível.

Lamentações

1. - Você é colagem.

    Isso me ofende? Faço colagens. Devo entendê-las e não nego se parte delas for. Ser colagem. Colagem, veja, é um objeto próprio no fim. Exige pensamento... Toda arte exige pensamento, certo? Bem, talvez sequer exija. Não pensando se habilita uma colagem que nada fala, e do espectador é feita a condução. É nisso que me aplico? A colagem ao todo... Talvez, a margem final. Coisas todas. Frases, desenhos, fotos. Cortes de cabelo que agora estão em mim. Não se faça de tonto. Você é tão colagem quanto eu. Quem derroga, derrogado é. Todos derrotados por suas sentenças. 

    Se me ofendi, me desculpe. Com sinceridade, devo ser sempre aflito. Estar na margem da guerra. Você às vezes ganha pela persistência, pelas unhas mal cortadas que com golpes sem direção se tornam fios delgados de sangue na pele do oponente.

    - Você também é colagem. Isso te incomoda?

 

2. Não quero terminar o pensamento assim. Todo para todos. Isto é arte e aquilo é arte. Esta é pra mim e aquela não. Vamos desmerecer alguma coisa. Algum objeto... Porém, que simplista e caótico! O que surgiu do humano deve ser desmerecido? Não. Deve ser arquivado. Que simplista caótico! Arquiva e chama de arte. Põe em alguma literatura artística. Isto é arte e aquilo é arte, para mim e para você. Não e não e não. Desmereça calado, coma a tela e engasgue a tinta. Simplista caótico! Simplista e caótico.

 

3. Desenvolve-se uma habilidade para sentir a dor. Prazer na dor. Horror à dor. Algo além do efeito desmoralizante da dor, como um acontecimento físico ou espiritual que encapsula um instante do tempo, uma viga lateral de história. Não. Faça-se mais que isso. Dor como procissão. Para se fazer homem, sentir-se mulher; deixar de ser humano em vez de compreender a existência do momento. Abdicar-se enquanto se inclui em sociedade. Múltiplos padrões.

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Massa sanguinária

1. Fortunato aquele que pensa além de si.

 

2. Talvez não tenha muita substância. É apenas mingau.

    Não, não gosto de mingau. Não gosto da textura paposa, mas talvez uma canjica... Tão insignificante quanto. Decidi ser ela. Como o mingau (por que me afasto do mingau e o vejo feminino?), nutre profundamente, mesmo que a substância peça acompanhamento... Não, isso é pela modéstia: o acompanhamento nos faz sociais. Sou canjica e procuro mingau. Yang, Yin. Procuro em minhas mãos ter prazer na textura paposa do mingau. E flerto com isso de maneira grandiosa, pois sou feliz em ser canjica. Sou feliz quando me cobrem de salsinha e cebolinha, quando me recheiam de costelinhas e sei – espero saber! – que o mingau é feliz coberto de canela, que o mingau é feliz recheado de canjiquinha.
Não me importo de, na minha brasa, no alicerce, não ter muita substância. Me fascinam aqueles que têm. Sociedade livre e bela em que canjicas e mingaus convivem com pratos elaborados e que todos são devorados pelo tempo, por cada coisinha que paira no ar. Pela fera e pela micose, que é nutrida e se espalha em desenhos lindos, sensações próprias, venenos e cheiros ousados.

    Fico feliz de me encontrar canjica, coisa que sei, profundamente, que me faz feliz jantar.

 

3. Uma vez você invadiu meu sonho. Fiquei grato, tive um momento contigo. No sonho, o Banco Itaú abrira sorveterias nas grandes cidades, como pequenas bancas 24 horas, abertas para aqueles com seus cartões. Até mesmo para abrir o freezer bastava deslizar seu cartão. Não lembro os sabores que pegamos. Você pegava, pesava e passava o cartão mais uma vez, com um bocado de câmeras reconhecendo seu rosto para amedrontar. Foi divertido me reaproximar de você (naquela perspectiva imaginária), naquela hora da noite de Belo Horizonte em que mais ratos do que gente vivenciavam as ruas.

 

4. A primeira coisa feita foi comer minha cabeça. Neste ponto eu já estava morto e solto do mundo. Eram dentes muito fortes e, diferentemente do meu controle sobre mim, aquele ser mastigava sem cautela.

    Na primeira mordida a ossada se destrinchou e a carne afundou num barranco mole. Mastigava sem cuidado pois eu não podia impor controle, então sucumbi à morte rápida e tortuosa, incrivelmente suculenta. Os olhos pulsaram e saíram de suas órbitas, os dentes trincaram e tudo se uniu em texturas sonoras e táteis. Fui comido. Morto comido. Logo após a cabeça o restante do corpo ainda mole e morno.

    Suculenta carne crua. Quanto tempo dura? Quanto pano incomoda tais dentes fortes? Afinal, se sequer ossos e dentes incomodaram a mastigação daquele ser, qual seria o problema de rasgar roupas finas e engoli-las? Talvez fossem as muitas camadas, com calça, colete, camisa e regata. Foram essas a engasgar e matá-lo. Morte tola. A minha, mastigado. Servindo apenas para de longe observar e declamar aos anjos. Ver-me excruciado numa massa de sangue com aquele ao lado engasgado roxo sem ar ao chão.

    Besta vida besta.

 

5. Queríamos acreditar que não teria nenhum bicho naquele monte de grão. Nada parecia se mexer e nos ausentamos de descobrir a data de validade do produto. Encontramos a sacola aberta, recortada. Estava muito bem vedada, porém. Quem o fez a vedou enrolando, dobrando e dando nós sobre nós, para não entrar ar. No entanto já tinha ar dentro do pacote. É essa a resolução planetária: se abriu tem ar. 

 

6. – My greyed elbows. Burnt, they're ashed. My body seems dried nowadays and I don't even know why. I keep moisturizing it, giving them my efforts and yet my elbows, my lips... Not my knees though. – I breathe and cackle – It's like they're telling me something. Those outer points, the weapons of the body. Dried. Defenseless.

 

7. Alec,

    Quando te vi daquela última vez, você estava rodeado por carneiros naquela pedra flutuante entre montanhas.

    Do outro canto do espaço observei amedrontado.

    Como poderia ter medo de seguir, com minhas duas pernas, alguém com tanto acalanto?

    Não saberia explicar. Meus pontos de vista são consumidos pela memória, como folhas de papel queimadas na brasa.

    Você estava cercado por carneiros. Pulavam e dançavam num círculo espaçoso, cujos espaços me permitiam admirar sua presença.

    No entanto hesitei em chamá-lo.

    Que criatura especial você é – e no contraste, naquela época e naquele espaço, de quem observava de longe, percebi que não estava completo. Não havia eu como um todo.

    Desculpe retornar este pensamento em mim. Será breve, com prontidão...

    Talvez tenha te amado, desconexo, como o metrônomo que se recusa a pontuar as batidas.

    Quem sabe talvez você entenda essa tentativa de poema, de carta. Essa tentativa de desculpas. Essa busca por barulhos, sons esdrúxulos que assustam e afagam meu coração.

    Te respeito, meu caro. Imensamente.

    No futuro, quem sabe, seguirei até a pedra flutuante com carneiros. Dançarei ao seu redor. Cena linda, magnífica, que muito me apetece em seus deslizes e derretimentos.

    Com carinho,

Sonhos cruzados

    I've just met you, but I know I dreamed about you before. Your face through the lenses I carry and my cold hands touching your heated skin. I felt the hairs – No, you felt me, didn't you? And you know that. You've had the same dream. Now we look at each other without words to convey, erasing by the minute any memories. You know, it's not a semblance of the past, time itself. It's always the future, wich is always the present. A dot and nothing more from what you keep drawing with your sharp pen. A dot, a dot, a dot... A single line around, filling itself.