1. Fortunato aquele que pensa além de si.
2. Talvez não tenha muita substância. É apenas mingau.
Não, não gosto de mingau. Não gosto da textura paposa, mas talvez uma canjica... Tão insignificante quanto. Decidi ser ela. Como o mingau (por que me afasto do mingau e o vejo feminino?), nutre profundamente, mesmo que a substância peça acompanhamento... Não, isso é pela modéstia: o acompanhamento nos faz sociais. Sou canjica e procuro mingau. Yang, Yin. Procuro em minhas mãos ter prazer na textura paposa do mingau. E flerto com isso de maneira grandiosa, pois sou feliz em ser canjica. Sou feliz quando me cobrem de salsinha e cebolinha, quando me recheiam de costelinhas e sei – espero saber! – que o mingau é feliz coberto de canela, que o mingau é feliz recheado de canjiquinha.
Não me importo de, na minha brasa, no alicerce, não ter muita substância. Me fascinam aqueles que têm. Sociedade livre e bela em que canjicas e mingaus convivem com pratos elaborados e que todos são devorados pelo tempo, por cada coisinha que paira no ar. Pela fera e pela micose, que é nutrida e se espalha em desenhos lindos, sensações próprias, venenos e cheiros ousados.
Fico feliz de me encontrar canjica, coisa que sei, profundamente, que me faz feliz jantar.
3. Uma vez você invadiu meu sonho. Fiquei grato, tive um momento contigo. No sonho, o Banco Itaú abrira sorveterias nas grandes cidades, como pequenas bancas 24 horas, abertas para aqueles com seus cartões. Até mesmo para abrir o freezer bastava deslizar seu cartão. Não lembro os sabores que pegamos. Você pegava, pesava e passava o cartão mais uma vez, com um bocado de câmeras reconhecendo seu rosto para amedrontar. Foi divertido me reaproximar de você (naquela perspectiva imaginária), naquela hora da noite de Belo Horizonte em que mais ratos do que gente vivenciavam as ruas.
4. A primeira coisa feita foi comer minha cabeça. Neste ponto eu já estava morto e solto do mundo. Eram dentes muito fortes e, diferentemente do meu controle sobre mim, aquele ser mastigava sem cautela.
Na primeira mordida a ossada se destrinchou e a carne afundou num barranco mole. Mastigava sem cuidado pois eu não podia impor controle, então sucumbi à morte rápida e tortuosa, incrivelmente suculenta. Os olhos pulsaram e saíram de suas órbitas, os dentes trincaram e tudo se uniu em texturas sonoras e táteis. Fui comido. Morto comido. Logo após a cabeça o restante do corpo ainda mole e morno.
Suculenta carne crua. Quanto tempo dura? Quanto pano incomoda tais dentes fortes? Afinal, se sequer ossos e dentes incomodaram a mastigação daquele ser, qual seria o problema de rasgar roupas finas e engoli-las? Talvez fossem as muitas camadas, com calça, colete, camisa e regata. Foram essas a engasgar e matá-lo. Morte tola. A minha, mastigado. Servindo apenas para de longe observar e declamar aos anjos. Ver-me excruciado numa massa de sangue com aquele ao lado engasgado roxo sem ar ao chão.
Besta vida besta.
5. Queríamos acreditar que não teria nenhum bicho naquele monte de grão. Nada parecia se mexer e nos ausentamos de descobrir a data de validade do produto. Encontramos a sacola aberta, recortada. Estava muito bem vedada, porém. Quem o fez a vedou enrolando, dobrando e dando nós sobre nós, para não entrar ar. No entanto já tinha ar dentro do pacote. É essa a resolução planetária: se abriu tem ar.
6. – My greyed elbows. Burnt, they're ashed. My body seems dried nowadays and I don't even know why. I keep moisturizing it, giving them my efforts and yet my elbows, my lips... Not my knees though. – I breathe and cackle – It's like they're telling me something. Those outer points, the weapons of the body. Dried. Defenseless.
7. Alec,
Quando te vi daquela última vez, você estava rodeado por carneiros naquela pedra flutuante entre montanhas.
Do outro canto do espaço observei amedrontado.
Como poderia ter medo de seguir, com minhas duas pernas, alguém com tanto acalanto?
Não saberia explicar. Meus pontos de vista são consumidos pela memória, como folhas de papel queimadas na brasa.
Você estava cercado por carneiros. Pulavam e dançavam num círculo espaçoso, cujos espaços me permitiam admirar sua presença.
No entanto hesitei em chamá-lo.
Que criatura especial você é – e no contraste, naquela época e naquele espaço, de quem observava de longe, percebi que não estava completo. Não havia eu como um todo.
Desculpe retornar este pensamento em mim. Será breve, com prontidão...
Talvez tenha te amado, desconexo, como o metrônomo que se recusa a pontuar as batidas.
Quem sabe talvez você entenda essa tentativa de poema, de carta. Essa tentativa de desculpas. Essa busca por barulhos, sons esdrúxulos que assustam e afagam meu coração.
Te respeito, meu caro. Imensamente.
No futuro, quem sabe, seguirei até a pedra flutuante com carneiros. Dançarei ao seu redor. Cena linda, magnífica, que muito me apetece em seus deslizes e derretimentos.
Com carinho,