1. Eu já nem sei te dizer... Todos esses desprazeres interrompidos são engessados e eventualmente esquecidos. Na chuva forte o gesso se desfaz, a pedra perdura. Aprendi e portanto não me preocupo.
2. Ontem do carro vi a escultura no centro da cidade. Ela sempre esteve lá, desde que me assentei por aqui. É pedra, obstáculo permanente. A essa altura da vida devo saber trabalhar com gesso. Não sei trabalhar com pedra.
3. Se comparo essas estruturas a esses meus desprazeres interrompidos, são eles gesso? São eles pedra? Irão desaparecer na chuva? Permanecer por mais uma década? Necessitam do entorno, o dentro da sala?
4. Não parece ser terapêutico não saber descrevê-los, de onde vêm ou o que são. Por uma década procuro a chuva forte sobre o gesso. Confundo os materiais que me estruturam esses sentimentos. Como expressá-los, liquefazê-los?
5. Quando interrompidos são articulados pelas mãos, amassando os fragmentos em novos desprazeres. Se essa fragilidade fosse o todo, talvez não me preocupasse. Não aprendi o que são, por que são e por que continuam a ser. Na chuva forte ou na sua ausência. Na minha estadia ou longe de mim.
quarta-feira, 26 de junho de 2024
Moldagem
Massa corrida
Não tendo boas proporções, o cabelo era grosso e leve, quase uma antítese, que não se manifestava numa forma estável e apenas flutuava em longos cachos sem dinâmica, como se o artista daquela criatura o tivesse feito em carvão às vezes borrado com o dedo, massas escuras com espaços de fios brancos contrastantes e nenhuma delicadeza. Nenhuma, um caos celebratório para aquela face bonita e decadente. Essa decadência era iminente e parecia estar apressada, a cada dia se manifestando de alguma nova forma na qual o cabelo sem definição não ajudava a declarar juventude ou disciplina. Não era rebelde, não parecia pelo menos ser, contudo também não era ajustado. Era a coisa do meio, aquele quem espera silencioso pela hora do parabéns para comer um único pedaço de bolo e partir, mandar suas lembranças e ir.
segunda-feira, 10 de junho de 2024
Revelações I
1. Às vezes você retira a seringa rapidamente, distraidamente e sem maldade no ato, que se revela num esguicho de sangue comicamente longo como uma mangueira de bocal semicerrado. O esguicho declina, espreguiça-se e volta a fechar os olhos – parte de seu feito engenhoso de coágulo te esperando o toque à procura de relevo. "Ainda está sangrando?", você se pergunta. Inchado somente. Talvez fique roxo, verde, cáqui. O leque de cores que não está na moda, porém na parede se acomoda junto à mobília de tons frios. O luxo da sobriedade e sua derivação de modéstia. Modéstia no quê, no vidro ancorado na pedra; no estofo de veludo e linho contra a madeira? Talvez seja isso. Na pele não orna. Não na minha pele. O relevo não tem o formato de um sofá, sequer pelo acolchoado feito veludo. No brilho dos olhos (vago o pensamento: meus olhos têm perdido o brilho) não há o reflexo de um vidro polido. Há de se faltar colírios lacrimais suficientes para isto, para a borracha esbranquiçada e molhada dos meus olhos brilharem. Tem-se uma bolinha de pega-pega no máximo. Diferentes tecidos e analogias que não têm se acomodado com a mobília certa, ou têm se perdido no meio das outras mobílias – você e mais você. Uma casa mal planejada em que nada se conecta e o gesso do teto foi passado rápido demais, ficou texturizado. Cheio de relevos, porque esguichou o sangue ao retirar a seringa. Não foi por maldade, foi por ocasião. Essas coisas acontecem, deixam suas marcas e esperam por cicatrização.
2. Se eu tateio no escuro à procura de direção, encontro com força o vidro que emoldura a sua obra. Isso te machuca? Sinto ter te ferido ultimamente, mesmo sem contato direto. Alguns corpos, criou-se a ilusão, são capazes de ignificar de forma autônoma. Entrar em combustão. Fósforo em transe contra a textura arenosa.
[O texto não foi continuado. Por que seria? O palito de fósforo contém enxofre em sua ponta, fósforo arenoso em sua lixa ao qual o atrito combusta. Entra em flama. Flâmula. Flor de fogo em seu espetáculo próprio. Morre em seguida, logo o texto igualmente morre. Este comentário é como a introdução de um filme de animação japonesa repassado para o público ocidental. Precisa-se explicar o contexto. Dar início ao meio e esperar pelo fim. Este é o fim, o desenho infinito do ponto final, maior que o texto em si. Que graça. Não soube, enfim, o motivo de te machucar. Entremos em combustão.].
3. Foi esfaqueado monstruosamente. Não era latrocínio ou crime fútil, porque não havia motivo. Fala-se do instinto do lobo ou do homem em sua alcateia, porém não se discute a realidade do nada que só a mente humana pode tecer: alguma coisa que se é nada. Motivação, instrução, definição. A barbárie, no entanto, não será lida assim, mesmo que desta forma seja.
Procura-se a relação da barbárie, as notas e pistas como cartas enganchadas que quando embaralhadas e postas em ordem revelam as qualidades básicas de um jogo: supor, propor, dispor e discorrer regras, o ordinário se tornando funcional. Quer-se isso do crime. Quer-se o crime num assassinato. Tornam-se necessários adjetivos e adjuntos às ações, sujeitos, verbos e objetos. Conduzir a ilustração ou narrar uma figura, um retrato. Do morto, do assassino e, entre eles, da causa.
4. Ó meu Deus, meu rosto agora está flácido. Estou dúbio em idade, esquivando minhas obrigações ou me obrigando a lidar com esses métodos. Meios e formas. Circunferências humanas, nada mais do que eu. Já a derme, a epiderme, ..., o crânio, os miolos, ..., as células abrangidas por essas todas vidas, estes minúsculos grãos, enturvados e inflados em seus pequenos, médios e grandes portes até a parte oleosa que protege a minha face, flácida face, com distinta angular moldura.
[À espera de boca,] Por um beijo e [Boca] que por mim me engula. Irei de encontro como um carro de motorista irado. Irado e certificado, com o alcance bem pronunciado e mapas lidos. Que sabe a direção. Você. Para bater e autodestruir. Camicase.
5. Essas doenças todas ancoradas ao corpo – certamente neste ponto seria a mais branda e rescisória a matá-lo. Pobre corpo, pouco cultural. Sem forma ou adoração, apenas um contexto de gritarias, irradiando a ira contida na má tradução de sua existência.
Ele atraía tais enfermidades tal qual tais enfermidades condicionavam suas dores. Trato bem feito e de regras justas, ainda que não completamente entendidas por todos os seus jogadores. Eram iniciantes aqueles de sua sociedade, contudo o mártir era único.
Sobrevivera a muitas dessas e esperava sobreviver a mais tantas, perdendo a amplitude de seu caráter no entremeio. A amplidão do ser, a lucidez. Estava menos e menos são, expirado feito ovos velhos, liquefeito dentro de uma casca à espera do trincamento. Deveria trincá-lo, mais e mais? Deveria chacoalhar o corpo? Adicionar tártaro? Química magnífica já o abandonara, apesar. Numa guerra de grandes bolas de chumbo estriadas em canhões, era a bala da Beretta no capacete o instrumento da morte.
6. Sou a Santa que chora Sangue.
Sem nomes e diante do sentido, construo verdadeira, plena, infinita adoração do corpo ao mundo. Não há descrição senão a percepção, e se nos faz nus, fá-lo tomando as barreiras sentimentais.
Sentido, não sentimento. Sentidos, sentidos. Sente-te o mundo. Tornas-te o mundo.
sábado, 1 de junho de 2024
Voz
1. Voz.
Faça a ginástica.
Não é indigno de se pensar ao perdê-la, a importância de exercitá-la, contê-la, extraí-la. Essa voz amarga que cresce, gravita, pesa...
Quando é feita a ginástica, o canto torto do músculo enrijecido, se destaca que foi criança negligenciada, crescida e firmada no mundo com independência. Sempre é. Mais do que alienar o corpo, se aliena a voz - a voz que carrega a mente, que é face da ideia, é articulação do horror. Sempre minuciosa em sua expressão, minúscula em sua presença. O maior grito ainda é mínimo para o mundo, porém o som ressoa além da estratosfera. No ar que se respira tem voz, tem grito, tem sussurro. Tem a fragrância de uma frequência na música destilada, diluída e transparente. Físico-química. Um ponto que se junta a outro. Sintético ou Orgânico.
Voz.
Permita ser vocalizada.
2. Com aquele olho foi pensado no tingir do mundo. A Íris e a Esclera e a Pupila. Carregam mil cores que influenciam a maneira em que o de fora é visto.
Entra e é moído feito carne triturada, feito a cenoura que se mastiga. Assim se faz a informação, o que você condena e o que adora.