1. Às vezes você retira a seringa rapidamente, distraidamente e sem maldade no ato, que se revela num esguicho de sangue comicamente longo como uma mangueira de bocal semicerrado. O esguicho declina, espreguiça-se e volta a fechar os olhos – parte de seu feito engenhoso de coágulo te esperando o toque à procura de relevo. "Ainda está sangrando?", você se pergunta. Inchado somente. Talvez fique roxo, verde, cáqui. O leque de cores que não está na moda, porém na parede se acomoda junto à mobília de tons frios. O luxo da sobriedade e sua derivação de modéstia. Modéstia no quê, no vidro ancorado na pedra; no estofo de veludo e linho contra a madeira? Talvez seja isso. Na pele não orna. Não na minha pele. O relevo não tem o formato de um sofá, sequer pelo acolchoado feito veludo. No brilho dos olhos (vago o pensamento: meus olhos têm perdido o brilho) não há o reflexo de um vidro polido. Há de se faltar colírios lacrimais suficientes para isto, para a borracha esbranquiçada e molhada dos meus olhos brilharem. Tem-se uma bolinha de pega-pega no máximo. Diferentes tecidos e analogias que não têm se acomodado com a mobília certa, ou têm se perdido no meio das outras mobílias – você e mais você. Uma casa mal planejada em que nada se conecta e o gesso do teto foi passado rápido demais, ficou texturizado. Cheio de relevos, porque esguichou o sangue ao retirar a seringa. Não foi por maldade, foi por ocasião. Essas coisas acontecem, deixam suas marcas e esperam por cicatrização.
2. Se eu tateio no escuro à procura de direção, encontro com força o vidro que emoldura a sua obra. Isso te machuca? Sinto ter te ferido ultimamente, mesmo sem contato direto. Alguns corpos, criou-se a ilusão, são capazes de ignificar de forma autônoma. Entrar em combustão. Fósforo em transe contra a textura arenosa.
[O texto não foi continuado. Por que seria? O palito de fósforo contém enxofre em sua ponta, fósforo arenoso em sua lixa ao qual o atrito combusta. Entra em flama. Flâmula. Flor de fogo em seu espetáculo próprio. Morre em seguida, logo o texto igualmente morre. Este comentário é como a introdução de um filme de animação japonesa repassado para o público ocidental. Precisa-se explicar o contexto. Dar início ao meio e esperar pelo fim. Este é o fim, o desenho infinito do ponto final, maior que o texto em si. Que graça. Não soube, enfim, o motivo de te machucar. Entremos em combustão.].
3. Foi esfaqueado monstruosamente. Não era latrocínio ou crime fútil, porque não havia motivo. Fala-se do instinto do lobo ou do homem em sua alcateia, porém não se discute a realidade do nada que só a mente humana pode tecer: alguma coisa que se é nada. Motivação, instrução, definição. A barbárie, no entanto, não será lida assim, mesmo que desta forma seja.
Procura-se a relação da barbárie, as notas e pistas como cartas enganchadas que quando embaralhadas e postas em ordem revelam as qualidades básicas de um jogo: supor, propor, dispor e discorrer regras, o ordinário se tornando funcional. Quer-se isso do crime. Quer-se o crime num assassinato. Tornam-se necessários adjetivos e adjuntos às ações, sujeitos, verbos e objetos. Conduzir a ilustração ou narrar uma figura, um retrato. Do morto, do assassino e, entre eles, da causa.
4. Ó meu Deus, meu rosto agora está flácido. Estou dúbio em idade, esquivando minhas obrigações ou me obrigando a lidar com esses métodos. Meios e formas. Circunferências humanas, nada mais do que eu. Já a derme, a epiderme, ..., o crânio, os miolos, ..., as células abrangidas por essas todas vidas, estes minúsculos grãos, enturvados e inflados em seus pequenos, médios e grandes portes até a parte oleosa que protege a minha face, flácida face, com distinta angular moldura.
[À espera de boca,] Por um beijo e [Boca] que por mim me engula. Irei de encontro como um carro de motorista irado. Irado e certificado, com o alcance bem pronunciado e mapas lidos. Que sabe a direção. Você. Para bater e autodestruir. Camicase.
5. Essas doenças todas ancoradas ao corpo – certamente neste ponto seria a mais branda e rescisória a matá-lo. Pobre corpo, pouco cultural. Sem forma ou adoração, apenas um contexto de gritarias, irradiando a ira contida na má tradução de sua existência.
Ele atraía tais enfermidades tal qual tais enfermidades condicionavam suas dores. Trato bem feito e de regras justas, ainda que não completamente entendidas por todos os seus jogadores. Eram iniciantes aqueles de sua sociedade, contudo o mártir era único.
Sobrevivera a muitas dessas e esperava sobreviver a mais tantas, perdendo a amplitude de seu caráter no entremeio. A amplidão do ser, a lucidez. Estava menos e menos são, expirado feito ovos velhos, liquefeito dentro de uma casca à espera do trincamento. Deveria trincá-lo, mais e mais? Deveria chacoalhar o corpo? Adicionar tártaro? Química magnífica já o abandonara, apesar. Numa guerra de grandes bolas de chumbo estriadas em canhões, era a bala da Beretta no capacete o instrumento da morte.
6. Sou a Santa que chora Sangue.
Sem nomes e diante do sentido, construo verdadeira, plena, infinita adoração do corpo ao mundo. Não há descrição senão a percepção, e se nos faz nus, fá-lo tomando as barreiras sentimentais.
Sentido, não sentimento. Sentidos, sentidos. Sente-te o mundo. Tornas-te o mundo.