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quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Carta de Amor II

    Você sequer tinha sua barba naquele sonho. Isso se me lembro direito de você. Não sei se me lembro, não te conheci muito bem. O que posso afirmar é a sua posição naquela esfera, o sonho, em que estava feroz contra mim.

    Deve ser como eu te imagino - faz sentido! -, embora esperasse que fosse a realidade além do onírico: você bravo e feroz feito um cão radical possuído pela raiva. Devolvi na mesma medida - Não, fui mau.

Defendi meu território e calei suas palavras com imensa racionalidade, fazendo questão de procurar mais provas além das fornecidas, que foram desnecessariamente caçadas por toda aquela cena para o puro estado da humilhação, que só pode ser visto assim agora com a crosta resfriada, vivido naquele instante como a construção sólida de minha defesa.

    Ninguém me violará.

    Sinto sua falta. Sinto-a porque não te conheci muito bem e gostaria de o ter feito. Não sei o que se desenvolveria disso. Agora só espero que tenhas ira, fome, mágoa; que gires seu rabo em torno disso, corras e apontes as orelhas para a direção tomada como pontas de flecha que cortam o vento.

    Encontre-me, pois não sei como te encontrar.

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Medusa e Caravela

    Eu descobri minha tristeza. É inerente. Porque sou uma pessoa feliz, que esboça sorrisos na própria existência e faz desta sua irradiação: vive e cria e a criação sobre a vida é a vida que contenta a vida e a contém. Tristemente. Feliz pessoa triste. Antítese? Oximóron?

    Todos os sentimentos podem permear a sala de uma mesma mente. Conjugam-se livremente mesclando e separando para seus unicelulares originais. O corpo sentimental é caravela-portuguesa. Vem de mesmo ser, trabalhando e se direcionando para sustentar funções inócuas que são satisfatórias em suas diligências ainda que fadadas ao mortífero do próprio cerne. Haraquiri ou caos organizado – são estas decisões laborais e torturantes (diga-se: auto-tortura) aquelas extremamente, singularmente organizadas, não necessariamente compreendidas à flor dos olhos além.

    “Não é medusa apesar da aparência”. Não é medusa. É cooperativista e não-usual. Balão uno de muitas e muitas partes (Antítese? Oximóron?), com fio e corda e corpo inflado que eletrocuta e morre, desloca e encalha, solta-se e come, que cria e modifica e reproduz.

sábado, 3 de agosto de 2024

Conversa Dental

     “Isso, isso… É claro que me importo com todos os acontecimentos que a mim são direcionados. Todos nós nos preocupamos, certo? Quem sabe? Não sou eu quem dirá por você. O que posso afirmar é que me importei com tudo e agora passo alheio como se não me importasse com nada. Aquele dia. Aquele acontecimento daquele dia. O que passou, o que vivi. Foi. Sabe o que realmente me incomoda? Perceba, venha analisar: não aquelas palavras das quais ele me chamou, situou e enfiou. É tudo categórico. O que me incomoda é que estavam no diminutivo. Quando criança, não é um problema te tratarem como criança e sim te tratarem como uma criancinha. Uma subcriança. Ali ele já me diminuiu. Restringiu a posse social. Era uma projeto de gente. Dessa forma de gente, tornou-se ainda mais restrita. Mínima. Jogou a dignidade para baixo, terra adentro. A semente, vamos configurar, sequer gerou a muda. Eu me tornei semente diante daquelas palavras. A criancinha que sequer é criança, categoria menor da vida humana, e ali, já adulto, uma categoria abaixo de onde eu poderia estar. Bananas para todo lado, pisando e escorregando. Uma alegoria circense, assim vista. Efeminado, triste, altamente cauteloso. Foi como fui descrito e guardei a raiva para desabar com vocês. Agora, dias depois, mantenho toda a mágoa no peito, porém não discutirei com ele. É profissional, não é mesmo? Assim se estabelece nossa conexão. Ele colocará suas luvas, enfiará as mãos em minha boca e me amordaçará de algum jeito. Literalmente ou não. Sairei do consultório com um dente a menos e muitas, muitas moedas de real gastas. Economia colapsante. É pela saúde, daí respeito. A saúde sequer tem diminutivo. “Saudinha?”, não existe. Portanto não dá para brincar. Com as pessoas brincamos. Brinca-se até destruir – e portanto não devo me abalar. O abalo é o flagelo do corpo e não se deve cair nesta armadilha.”

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Desalento

    Nossas últimas memórias foram tapas. Tapas bem-dados e merecidos que não causaram dor. Temo pelo cachorro, não o quero diante de minhas sujeiras, mas por vocês não temo. Faço-o pela obtusa tentativa de independência, em que sobre meu corpo desfaço-o. É um método feliz e não convencional, porque espero me definir e alinhar ao mundo, juntando sentenças em união à terra. Ninguém sairá perdendo.
    Com o tempo se perceberá que foi pueril, porém nato e necessário caso dado certo. Não devo pensar no futuro e suas possibilidades infundadas, embora seja de praxe especular o terror do estar vegetativo, inabitável e sempre em dor, incapaz sequer de atender aos requisitos de meus criadores. Esta não é a hora de se pensar nisso, tome a atitude como navegação. Descansar os músculos, a mente, os ossos e a alma.

domingo, 14 de julho de 2024

Faqueiro

    A carne recém-cortada é molhada.
    Não é isso o que você quer?

    Sem luvas, saiba como amaciar as estrias, dosar a gordura e manter com sugestão o que se possa sorver com gosto. Para nosso paladar, que seja este um banquete.

    Não quero apenas que me dose com o toque. Quero desde o início te ver cortar minha célula.
    A lâmina é afiada? Irá perfurar, penetrar? Um corte bem dado não possui dor imediata. O salmão não percebe a morte.

    Estrangule-me com seus métodos treinados.


    Sem luvas, saiba como amaciar as estrias, dosar a gordura e manter com sugestão o que se possa sorver com gosto. Um golpe sem marcas que seja uma lembrança sem tortura, que foi pedido, emitido e concordado como o envio de uma carta.

    Não quero apenas que me dose com o toque.
    A carne recém-cortada é molhada e um corte bem dado não possui dor imediata. Não é isso o que eu quero? Para nosso paladar, que seja este um banquete.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Moldagem

1. Eu já nem sei te dizer... Todos esses desprazeres interrompidos são engessados e eventualmente esquecidos. Na chuva forte o gesso se desfaz, a pedra perdura. Aprendi e portanto não me preocupo.

2.
Ontem do carro vi a escultura no centro da cidade. Ela sempre esteve lá, desde que me assentei por aqui. É pedra, obstáculo permanente. A essa altura da vida devo saber trabalhar com gesso. Não sei trabalhar com pedra.

3. Se comparo essas estruturas a esses meus desprazeres interrompidos, são eles gesso? São eles pedra? Irão desaparecer na chuva? Permanecer por mais uma década? Necessitam do entorno, o dentro da sala?

4. Não parece ser terapêutico não saber descrevê-los, de onde vêm ou o que são. Por uma década procuro a chuva forte sobre o gesso. Confundo os materiais que me estruturam esses sentimentos. Como expressá-los, liquefazê-los?

5. Quando interrompidos são articulados pelas mãos, amassando os fragmentos em novos desprazeres. Se essa fragilidade fosse o todo, talvez não me preocupasse. Não aprendi o que são, por que são e por que continuam a ser. Na chuva forte ou na sua ausência. Na minha estadia ou longe de mim.

Massa corrida

    Não tendo boas proporções, o cabelo era grosso e leve, quase uma antítese, que não se manifestava numa forma estável e apenas flutuava em longos cachos sem dinâmica, como se o artista daquela criatura o tivesse feito em carvão às vezes borrado com o dedo, massas escuras com espaços de fios brancos contrastantes e nenhuma delicadeza. Nenhuma, um caos celebratório para aquela face bonita e decadente. Essa decadência era iminente e parecia estar apressada, a cada dia se manifestando de alguma nova forma na qual o cabelo sem definição não ajudava a declarar juventude ou disciplina. Não era rebelde, não parecia pelo menos ser, contudo também não era ajustado. Era a coisa do meio, aquele quem espera silencioso pela hora do parabéns para comer um único pedaço de bolo e partir, mandar suas lembranças e ir.

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Revelações I

1. Às vezes você retira a seringa rapidamente, distraidamente e sem maldade no ato, que se revela num esguicho de sangue comicamente longo como uma mangueira de bocal semicerrado. O esguicho declina, espreguiça-se e volta a fechar os olhos – parte de seu feito engenhoso de coágulo te esperando o toque à procura de relevo. "Ainda está sangrando?", você se pergunta. Inchado somente. Talvez fique roxo, verde, cáqui. O leque de cores que não está na moda, porém na parede se acomoda junto à mobília de tons frios. O luxo da sobriedade e sua derivação de modéstia. Modéstia no quê, no vidro ancorado na pedra; no estofo de veludo e linho contra a madeira? Talvez seja isso. Na pele não orna. Não na minha pele. O relevo não tem o formato de um sofá, sequer pelo acolchoado feito veludo. No brilho dos olhos (vago o pensamento: meus olhos têm perdido o brilho) não há o reflexo de um vidro polido. Há de se faltar colírios lacrimais suficientes para isto, para a borracha esbranquiçada e molhada dos meus olhos brilharem. Tem-se uma bolinha de pega-pega no máximo. Diferentes tecidos e analogias que não têm se acomodado com a mobília certa, ou têm se perdido no meio das outras mobílias – você e mais você. Uma casa mal planejada em que nada se conecta e o gesso do teto foi passado rápido demais, ficou texturizado. Cheio de relevos, porque esguichou o sangue ao retirar a seringa. Não foi por maldade, foi por ocasião. Essas coisas acontecem, deixam suas marcas e esperam por cicatrização.

 

2. Se eu tateio no escuro à procura de direção, encontro com força o vidro que emoldura a sua obra. Isso te machuca? Sinto ter te ferido ultimamente, mesmo sem contato direto. Alguns corpos, criou-se a ilusão, são capazes de ignificar de forma autônoma. Entrar em combustão. Fósforo em transe contra a textura arenosa.


    [O texto não foi continuado. Por que seria? O palito de fósforo contém enxofre em sua ponta, fósforo arenoso em sua lixa ao qual o atrito combusta. Entra em flama. Flâmula. Flor de fogo em seu espetáculo próprio. Morre em seguida, logo o texto igualmente morre. Este comentário é como a introdução de um filme de animação japonesa repassado para o público ocidental. Precisa-se explicar o contexto. Dar início ao meio e esperar pelo fim. Este é o fim, o desenho infinito do ponto final, maior que o texto em si. Que graça. Não soube, enfim, o motivo de te machucar. Entremos em combustão.].


3. Foi esfaqueado monstruosamente. Não era latrocínio ou crime fútil, porque não havia motivo. Fala-se do instinto do lobo ou do homem em sua alcateia, porém não se discute a realidade do nada que só a mente humana pode tecer: alguma coisa que se é nada. Motivação, instrução, definição. A barbárie, no entanto, não será lida assim, mesmo que desta forma seja.

    Procura-se a relação da barbárie, as notas e pistas como cartas enganchadas que quando embaralhadas e postas em ordem revelam as qualidades básicas de um jogo: supor, propor, dispor e discorrer regras, o ordinário se tornando funcional. Quer-se isso do crime. Quer-se o crime num assassinato. Tornam-se necessários adjetivos e adjuntos às ações, sujeitos, verbos e objetos. Conduzir a ilustração ou narrar uma figura, um retrato. Do morto, do assassino e, entre eles, da causa.


4. Ó meu Deus, meu rosto agora está flácido. Estou dúbio em idade, esquivando minhas obrigações ou me obrigando a lidar com esses métodos. Meios e formas. Circunferências humanas, nada mais do que eu. Já a derme, a epiderme, ..., o crânio, os miolos, ..., as células abrangidas por essas todas vidas, estes minúsculos grãos, enturvados e inflados em seus pequenos, médios e grandes portes até a parte oleosa que protege a minha face, flácida face, com distinta angular moldura.

    [À espera de boca,] Por um beijo e [Boca] que por mim me engula. Irei de encontro como um carro de motorista irado. Irado e certificado, com o alcance bem pronunciado e mapas lidos. Que sabe a direção. Você. Para bater e autodestruir. Camicase.

 

5. Essas doenças todas ancoradas ao corpo – certamente neste ponto seria a mais branda e rescisória a matá-lo. Pobre corpo, pouco cultural. Sem forma ou adoração, apenas um contexto de gritarias, irradiando a ira contida na má tradução de sua existência.

    Ele atraía tais enfermidades tal qual tais enfermidades condicionavam suas dores. Trato bem feito e de regras justas, ainda que não completamente entendidas por todos os seus jogadores. Eram iniciantes aqueles de sua sociedade, contudo o mártir era único.

    Sobrevivera a muitas dessas e esperava sobreviver a mais tantas, perdendo a amplitude de seu caráter no entremeio. A amplidão do ser, a lucidez. Estava menos e menos são, expirado feito ovos velhos, liquefeito dentro de uma casca à espera do trincamento. Deveria trincá-lo, mais e mais? Deveria chacoalhar o corpo? Adicionar tártaro? Química magnífica já o abandonara, apesar. Numa guerra de grandes bolas de chumbo estriadas em canhões, era a bala da Beretta no capacete o instrumento da morte.


6. Sou a Santa que chora Sangue.

    Sem nomes e diante do sentido, construo verdadeira, plena, infinita adoração do corpo ao mundo. Não há descrição senão a percepção, e se nos faz nus, fá-lo tomando as barreiras sentimentais.

    Sentido, não sentimento. Sentidos, sentidos. Sente-te o mundo. Tornas-te o mundo.

sábado, 1 de junho de 2024

Voz

1. Voz.

    Faça a ginástica.

    Não é indigno de se pensar ao perdê-la, a importância de exercitá-la, contê-la, extraí-la. Essa voz amarga que cresce, gravita, pesa...

    Quando é feita a ginástica, o canto torto do músculo enrijecido, se destaca que foi criança negligenciada, crescida e firmada no mundo com independência. Sempre é. Mais do que alienar o corpo, se aliena a voz - a voz que carrega a mente, que é face da ideia, é articulação do horror. Sempre minuciosa em sua expressão, minúscula em sua presença. O maior grito ainda é mínimo para o mundo, porém o som ressoa além da estratosfera. No ar que se respira tem voz, tem grito, tem sussurro. Tem a fragrância de uma frequência na música destilada, diluída e transparente. Físico-química. Um ponto que se junta a outro. Sintético ou Orgânico.

    Voz.

    Permita ser vocalizada.

 

2. Com aquele olho foi pensado no tingir do mundo. A Íris e a Esclera e a Pupila. Carregam mil cores que influenciam a maneira em que o de fora é visto.

    Entra e é moído feito carne triturada, feito a cenoura que se mastiga. Assim se faz a informação, o que você condena e o que adora.

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Lamento

    Aos 30 anos o corpo tinha peso inexplicável ao dos 20. Os braços suspendiam queimadas sem deixar rastros. Percebi que a cada ano éramos mais bonecos articulados do que gente, pois cada junta tinha seu nome, sua função e sua disposição a aparentar. Você logo era possuidora, observadora – de si e de cada parte contida em si. Cada fresta e cada nexo do corpo. Cada alelo e cada célula. Cada dor a seu favor.

    Mas não se era conhecedora da própria vítima. Se não era antes, enquanto gente, seria agora enquanto invólucro articulado? Em vez de se resfriar na sabedoria e conectar os pinos, novos pinos se formavam. Mais profundos, acertando nervos e veias. Cáusticos sem acomodação.

    Foram inúmeras pílulas de nortriptilina e comprimidos de amitriptilina. Muito além do que comportava meu peso. Ainda assim demorou alguma certeza de tempo para irradiar tremores, vômitos e convulsões.

    Você era e eventualmente deixava de ser, como recentemente, de maneira efervescente e bela, no exame de endoscopia em que fui sedada pelas narinas. Estava ligada e deixei de estar, feito um televisor em stand-by.

    Agora entretanto não tinha o acordar.

    Essas palavras todas são códigos. Despedi-me. Flutuava massa cinza pelo ar, diante dos prédios e abaixo das nuvens. Sem rumo e sem função. Sem mérito. Nenhum valor. Sem tristeza ou vitória, você não é mais um critério social.

    Descompensei-me do mundo e não há referência abaixo, sequer acima. O código que lhe fito como uma flecha irá expirar. Sem ver o Sol, Vênus ou a estação espacial. Sem assombrar a lápide no cemitério ou sequer reconhecer aquele que usa os trapos dados aos brechós. Sem vigência de língua, tempo, matemática. São todos didáticos, e o didático agora não lhe cabe. Atravessa sua massa cinza sem valor. Existente e incompreensível.

Lamentações

1. - Você é colagem.

    Isso me ofende? Faço colagens. Devo entendê-las e não nego se parte delas for. Ser colagem. Colagem, veja, é um objeto próprio no fim. Exige pensamento... Toda arte exige pensamento, certo? Bem, talvez sequer exija. Não pensando se habilita uma colagem que nada fala, e do espectador é feita a condução. É nisso que me aplico? A colagem ao todo... Talvez, a margem final. Coisas todas. Frases, desenhos, fotos. Cortes de cabelo que agora estão em mim. Não se faça de tonto. Você é tão colagem quanto eu. Quem derroga, derrogado é. Todos derrotados por suas sentenças. 

    Se me ofendi, me desculpe. Com sinceridade, devo ser sempre aflito. Estar na margem da guerra. Você às vezes ganha pela persistência, pelas unhas mal cortadas que com golpes sem direção se tornam fios delgados de sangue na pele do oponente.

    - Você também é colagem. Isso te incomoda?

 

2. Não quero terminar o pensamento assim. Todo para todos. Isto é arte e aquilo é arte. Esta é pra mim e aquela não. Vamos desmerecer alguma coisa. Algum objeto... Porém, que simplista e caótico! O que surgiu do humano deve ser desmerecido? Não. Deve ser arquivado. Que simplista caótico! Arquiva e chama de arte. Põe em alguma literatura artística. Isto é arte e aquilo é arte, para mim e para você. Não e não e não. Desmereça calado, coma a tela e engasgue a tinta. Simplista caótico! Simplista e caótico.

 

3. Desenvolve-se uma habilidade para sentir a dor. Prazer na dor. Horror à dor. Algo além do efeito desmoralizante da dor, como um acontecimento físico ou espiritual que encapsula um instante do tempo, uma viga lateral de história. Não. Faça-se mais que isso. Dor como procissão. Para se fazer homem, sentir-se mulher; deixar de ser humano em vez de compreender a existência do momento. Abdicar-se enquanto se inclui em sociedade. Múltiplos padrões.

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Massa sanguinária

1. Fortunato aquele que pensa além de si.

 

2. Talvez não tenha muita substância. É apenas mingau.

    Não, não gosto de mingau. Não gosto da textura paposa, mas talvez uma canjica... Tão insignificante quanto. Decidi ser ela. Como o mingau (por que me afasto do mingau e o vejo feminino?), nutre profundamente, mesmo que a substância peça acompanhamento... Não, isso é pela modéstia: o acompanhamento nos faz sociais. Sou canjica e procuro mingau. Yang, Yin. Procuro em minhas mãos ter prazer na textura paposa do mingau. E flerto com isso de maneira grandiosa, pois sou feliz em ser canjica. Sou feliz quando me cobrem de salsinha e cebolinha, quando me recheiam de costelinhas e sei – espero saber! – que o mingau é feliz coberto de canela, que o mingau é feliz recheado de canjiquinha.
Não me importo de, na minha brasa, no alicerce, não ter muita substância. Me fascinam aqueles que têm. Sociedade livre e bela em que canjicas e mingaus convivem com pratos elaborados e que todos são devorados pelo tempo, por cada coisinha que paira no ar. Pela fera e pela micose, que é nutrida e se espalha em desenhos lindos, sensações próprias, venenos e cheiros ousados.

    Fico feliz de me encontrar canjica, coisa que sei, profundamente, que me faz feliz jantar.

 

3. Uma vez você invadiu meu sonho. Fiquei grato, tive um momento contigo. No sonho, o Banco Itaú abrira sorveterias nas grandes cidades, como pequenas bancas 24 horas, abertas para aqueles com seus cartões. Até mesmo para abrir o freezer bastava deslizar seu cartão. Não lembro os sabores que pegamos. Você pegava, pesava e passava o cartão mais uma vez, com um bocado de câmeras reconhecendo seu rosto para amedrontar. Foi divertido me reaproximar de você (naquela perspectiva imaginária), naquela hora da noite de Belo Horizonte em que mais ratos do que gente vivenciavam as ruas.

 

4. A primeira coisa feita foi comer minha cabeça. Neste ponto eu já estava morto e solto do mundo. Eram dentes muito fortes e, diferentemente do meu controle sobre mim, aquele ser mastigava sem cautela.

    Na primeira mordida a ossada se destrinchou e a carne afundou num barranco mole. Mastigava sem cuidado pois eu não podia impor controle, então sucumbi à morte rápida e tortuosa, incrivelmente suculenta. Os olhos pulsaram e saíram de suas órbitas, os dentes trincaram e tudo se uniu em texturas sonoras e táteis. Fui comido. Morto comido. Logo após a cabeça o restante do corpo ainda mole e morno.

    Suculenta carne crua. Quanto tempo dura? Quanto pano incomoda tais dentes fortes? Afinal, se sequer ossos e dentes incomodaram a mastigação daquele ser, qual seria o problema de rasgar roupas finas e engoli-las? Talvez fossem as muitas camadas, com calça, colete, camisa e regata. Foram essas a engasgar e matá-lo. Morte tola. A minha, mastigado. Servindo apenas para de longe observar e declamar aos anjos. Ver-me excruciado numa massa de sangue com aquele ao lado engasgado roxo sem ar ao chão.

    Besta vida besta.

 

5. Queríamos acreditar que não teria nenhum bicho naquele monte de grão. Nada parecia se mexer e nos ausentamos de descobrir a data de validade do produto. Encontramos a sacola aberta, recortada. Estava muito bem vedada, porém. Quem o fez a vedou enrolando, dobrando e dando nós sobre nós, para não entrar ar. No entanto já tinha ar dentro do pacote. É essa a resolução planetária: se abriu tem ar. 

 

6. – My greyed elbows. Burnt, they're ashed. My body seems dried nowadays and I don't even know why. I keep moisturizing it, giving them my efforts and yet my elbows, my lips... Not my knees though. – I breathe and cackle – It's like they're telling me something. Those outer points, the weapons of the body. Dried. Defenseless.

 

7. Alec,

    Quando te vi daquela última vez, você estava rodeado por carneiros naquela pedra flutuante entre montanhas.

    Do outro canto do espaço observei amedrontado.

    Como poderia ter medo de seguir, com minhas duas pernas, alguém com tanto acalanto?

    Não saberia explicar. Meus pontos de vista são consumidos pela memória, como folhas de papel queimadas na brasa.

    Você estava cercado por carneiros. Pulavam e dançavam num círculo espaçoso, cujos espaços me permitiam admirar sua presença.

    No entanto hesitei em chamá-lo.

    Que criatura especial você é – e no contraste, naquela época e naquele espaço, de quem observava de longe, percebi que não estava completo. Não havia eu como um todo.

    Desculpe retornar este pensamento em mim. Será breve, com prontidão...

    Talvez tenha te amado, desconexo, como o metrônomo que se recusa a pontuar as batidas.

    Quem sabe talvez você entenda essa tentativa de poema, de carta. Essa tentativa de desculpas. Essa busca por barulhos, sons esdrúxulos que assustam e afagam meu coração.

    Te respeito, meu caro. Imensamente.

    No futuro, quem sabe, seguirei até a pedra flutuante com carneiros. Dançarei ao seu redor. Cena linda, magnífica, que muito me apetece em seus deslizes e derretimentos.

    Com carinho,

Sonhos cruzados

    I've just met you, but I know I dreamed about you before. Your face through the lenses I carry and my cold hands touching your heated skin. I felt the hairs – No, you felt me, didn't you? And you know that. You've had the same dream. Now we look at each other without words to convey, erasing by the minute any memories. You know, it's not a semblance of the past, time itself. It's always the future, wich is always the present. A dot and nothing more from what you keep drawing with your sharp pen. A dot, a dot, a dot... A single line around, filling itself.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Ultrassom

1. O meu ventre. No meu ventre. O meu ventre...

    Assumo que com meus olhos só posso encarar o fora.

    - Toda vista é representação do que o fora me fornece. 

    - E a ultrassonografia, Senhor?

    ...

    O meu ventre. Sim, o meu ventre. No meu ventre, que o Doutor lambuza com gel, se cria imagem.

    - A imagem é o fora, sim, de algo de dentro. Que o fora me oferece nesta tela azul.


2. Com o cano mergulhado na garganta. Ó sensação ruim! Ruim e prazerosa. Prazeres devassos que o Doutor magrelo me ofereceu por uma sedação malfeita. Senti na garganta o cano recortar a carne mole. Que surpresa! Não me lembro – e portanto não posso comunicar com exatidão – se o sangue que não passou pela língua tinha gosto.

    - Há gosto na hemorragia?

    - Não sei te dizer, Senhor.

    Enfim, enfim... No fim do cano se arrastava uma câmera. Um ultrassom? Um veículo! Talvez este quem me cortou os tubos humanos. Figura agora gente por trás de minhas palavras. Para chegar no esôfago. Era um Ecodopplercardiograma Transesofágico. Ver imagens do meu coração, de dentro para dentro para fora.

    Bem, eles viram. Não pude exatamente me mexer e naqueles instantes fingia que a sedação servia a meu favor.

    - Você pôde ver meu coração, Caro?

    - Não exatamente... Círculos e pontos, números como coordenadas. Tudo pulsante. E mais... - ... - os cabelos louros da Assistente ficavam na minha frente.

    No fim sequer soube se me trouxeram imagens... Ou se as entendi naquela hora.


3. - Vai ver nós sejamos burros.

    - É mesmo?

    O ventre burro. Burro, burro, parte de um ser equivalente. Mas talvez... com suas poucas preocupações se comunica com o ser Burro que o carrega. Meu ventre. Eu, burro.

    Assumo que o que ouço e sinto é o que não posso ver. Experiência nova, sólida, coisa demais para além da visão. O dentro. O dentro da barriga.


4. Na maca do consultório sinto o gel frio sendo espalhado pela barriga. Olho pra cima. Meu Assistente olha pra mim e a Assistente do Doutor olha para a tela. Imagino que se houvesse maior nudez este encontro seria mais íntimo. É necessário intimidade em consulta médica ou isso é contra a moral acadêmica?

    É outro dia e a lembrança do ultrassom de dentro para fora zapeia o cérebro como quando se erra a costura e acerta o dedo despercebidamente. Não é o caso daqui, porém lembranças sempre perturbam o homem. É a idealização delas. É o trabalho das lembranças.

    - Trabalho interessante. - foi solto no mundo e imediatamente mal entendido.

    - Vejo muita gente todo dia. Uns melhores e uns piores.

    Vê-se. Vê-se, penso, o que o fora oferece. Uns melhores e uns piores.

    A barriga não vê, assumo. Ventre, quero dizer. Vamos dar títulos melhores. É o que posso oferecer como moeda de troca a essa parte de Bicho que carrego. Que me carrega. Mais de um terço do corpo.

    O ventre sente. Infinitamente superior. Sentir carrega além do tempo, e o que me carrega carrega o sentimento.

    A consulta não durou muito. Era rotina para meu problema. Um peso extra ao cotidiano: peso que durava tempo e tempo que me fazia olhar para o gesso do teto enquanto sentia o frio se estendendo pelo meu morro com umbigo. Pensei nisso desta forma pois quando a Assistente do Doutor me limpou com folhas finas e ásperas de papel, um globo gelatinoso se ocupou do meu espaço. "Uma piscininha, Senhor!" comentaria meu Assistente. Total assombração me tomou agressivo à procura por uma dessas folhas finas e ásperas, como quem quer tomar todas as ações de uma empresa.

    Espero que não tenha sido essa a impressão da pobre coitada - Não, não me importaria por tal. Vê-se ali muita gente todo dia. Uns melhores e uns piores.

 

5. O meu ventre. No meu ventre. O meu ventre... Este ventre que não via se comunicava por outros métodos. Grunhia, tremia, vibrava. Sentido e sinestesia.

    A visão, do fora, ainda muito me era importante naquele instante. Era procurado entender cada coisa que no ventre cabia - seus grunhidos e sensações - à procura de me entender. Minhas dores e meus tremores, o que via e o que engolia.

    Era muito bárbaro tomar por assim a vida. Em seus limites. Ainda mais bárbaro, do próprio lutador, estremecer esses limites até que se fundissem.

    O de dentro dado ao fora junto ao que de fora era entregue a mim. Equilíbrio, quem sabe, ao perder estes na tela azul do ultrassom.

sábado, 30 de março de 2024

Transcrição

1. Talvez seja mesmo um pensamento convoluto. Não sei de quem. Ou meu ou de você. Algum pensou no outro, talvez os dois pensaram simultaneamente, daí os relógios (algum relógio no mundo) fizeram questão de marcar o momento idêntico e nos revelar. Não muito mais que isso.

    Que semântica idiota. Que perda de tempo abobalhada. Que rubor na face. Carinho pelo clique e pelo claque, via telepatia e de olho no objeto.



2. Esta é uma das mudanças na qual me recuso a entender, a de não poder - delirar, fugir. Qual é o meu ganho em encarar a todos com a face limpa e um escudo de papel machê? Planos são, subjetivamente, organizações, enquanto o que se habilita aqui nos não dizeres parece ser sem ordem ou propósito.



3. Diga, Misericórdia! O santo se energizou nos cantos e agora a paróquia sentia o compromisso que ditava a reza. Talvez pela primeira vez os incautos tenham de fato louvado suas palavras. Não havia somente sabedoria em repetição: o que se conhecia por memória. Ditou-se então a Guarda Santa, a crença de um lugar melhor e sereno para se habitar no mundo.

    Aquelas senhorinhas porém pensavam com tamanha experiência de vida: deveriam sair dali? A calmaria, o pleno vácuo do vacilo humano, lograva aquela paróquia? Perguntas e perguntas e perguntas. Este autor sempre se perde nelas. Assim como os de terno se perdiam em suas próprias perguntas: por quanto tempo permaneceriam ali? Por quanto tempo durariam ali? Ou era todo este um compromisso eterno, de eterna sede e eterno jejum? O sofrimento permanece na certeza da vida eterna, a eles era claro. Nunca se esperava do Santo uma troca de quociente exato.

sexta-feira, 29 de março de 2024

O Cheiro do Corpo

    Não consigo conviver com o meu cheiro. Meu cheiro de gente. A existência palatável: gosto, olfato, som. Por que se ser humano é extravagante? Ocupa a matéria. Ocupa o espaço. Destrói ao toque porque se faz cheio. Enche. Enche, preenche o gargalo. É a má digestão do que não come.

    Tenho retirado lascas de pele com um estilete. Não faz bem, porém me serve de linguagem. Você lê? É capaz de ler este poema? Penso que, no ônibus, notei que nos pulsos dela cicatrizes demonstravam o passado. Não era nada grotesco, apesar da descrição assim coincidir. Provavelmente alguma traquinagem de criança que prendeu mãos no metal. Marcou pra sempre, com felicidade ou infelicidade. Isso, porém, não era o foco deste meu relato, entretanto agora tomou conta daqui. Que bom. Que assim seja. O meu cheiro de gente nada importa para outra gente. Gente e gente, cada um é gente só. Com suas próprias existências palatáveis e raízes temporais de vacinas tomadas, mordidas de cachorro, raspagens no estilete.

    Ela muito aparece em meus pensamentos. Na verdade, ela é parte de muitos. Muitos que aprecio como divindade, mesmo sabendo dos prós e contras na pequena vivência urbana que extraíamos coletivamente. Sinto saudades tantas. Não de seus cheiros e gostos. Talvez de seus sons. Imagens, também. Quer saber, talvez de tudo. Quero saber de seus cheiros e gostos, por que não? Quero palmas das mãos coladas, medir tamanho como a família imaginária faz. "Olha você e olha eu, que diferença". Quero acreditar em voz baixa que somos todos irmãos e que há fraternidade em todo amor, que devo me esforçar para conviver com meu cheiro. Meu cheiro de gente. Percebo-o porque tenho cada dia mais deixado de ser um ser. De ser ser humano, ser parte do coletivo e, portanto, da unidade. Deixei, é claro, de ser parte deles. Restam só as memórias e nenhuma tentativa de contato. Tudo é possível se se correr atrás, dizem, porém certamente devemos nos atentar às regras da moralidade. A alguns se deve dar a distância. A recuperação própria. Talvez eu esteja me dando isso, mesmo sem saber. Se possível, quero saber. Conte sobre isso quando nos encontrarmos.

    Cada nova lasca de pele que cresce é nova, de nova cor, nova textura e novas bactérias vívidas ao redor. A pessoa, espera-se, no contexto novo, é a mesma. Nunca se é e ainda assim é algo constante... vá entender. É uma conta de multiplicações e divisões integrais. Tem resultados sólidos, matemática fatal, comutada pelos senhores que observam do estado máximo este planetoide. Com algum controle vivenciamos a pequena existência, apenas exprimindo e contorcendo estas felicidades e tristezas. Analisando-as, ponderando-as, recusando-as. Fazendo a digestão. Digerindo-as após o alimento. Percebendo a má digestão no corpo. Incorporando o jejum.

Creme do Corpo

    Vagando, vagando, vagando estou. Vagando, vagando, vagando aguardo.

    O creme do corpo, saído da lata. Alma pura e soberana impressa na carne. É musculatura. Forma caminhos sob as ranhuras. Conecta e conversa. Você é corpo. Vaso cheio de espírito. Vida e morte esperando receptáculos.

    O creme do corpo, saído da lata. Carne fosca e deliciosa. Sorvida por outrem. É musculatura coberta pelos panos de pele. Pele e pelos, arqueados sob o vento. Conecta e conversa. Dá voz pelo movimento. Expira e inspira. Você tem voz. Vaso recheado de informação. Vida e morte esperando atenção.

    O creme do corpo, saído da lata. Calor que manifesta a textura, liquidez, tempo e espaço. Esfria e esquenta, faça-se a vida. É musculatura. Procura mover-se nos caminhos de fora, sentindo de lá a presença do mundo. Grita-se. Conecta e conversa. Grita toda a dor que carrega. Carrega e leva no seu caminhar. Vaso cheio de dor. Vida e morte aguardando fusão.

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Pequenos textos

1. Escovou toda a boca. Não só os dentes. Tinha tanta pressa e fazia tanta força que as cerdas atravessavam a gengiva numa truculenta luta de esgrima. Iria a uma consulta médica e sequer havia atraso para tamanha comoção. Apenas queria ir e torcia para que lá uma força maior e mais conceituada timbrasse sua invalidez.

    Talvez os dias todos fossem feitos por ações rápidas e opacas. Passava o café como se a água fosse transfusão de sangue; comia o pão como se a massa concedesse mais um instante sobre a terra, e o corpo aprendeu a se ajustar com tamanha adrenalina - por cooperação ou coerção -, pois mantinha todos os fios vermelhos, pálidos e lisos na perfeita geometria em direção ao chão.

    Sua jornada médica, em outro caso, aconteceu aos pulos. Nunca fora. Não era uma preocupação. A vida regrada das Ciências da Computação mantinha dedos interligados ao fluxo dos olhos, ao comando do cérebro, a uma ordem sensacional de diligência perante a máquina. Eventualmente alguma dor chegou. Chegou e se alastrou como uma queimadura por toda a pele sem tecer marcas. Apenas doía e valia a palavra, porém esta não era uma pessoa de parir suas ideias de mundo em grandes gracejos vocálicos. Foi a troca completa, virou-se a casaca ou coisa do tipo. Buscava agora o pleno descanso e obteria isso mediante o carimbo sobre o receituário.


2. Tenho certeza de que foi você quem desgraçou com meus feromônios. Primeiro pensei se poderia pôr meu peso sobre o seu, ajoelhado sobre as coxas. Era uma inutilidade, presumo. Nos tornaríamos uma balança e então com controle o tramaria com um cilício. Faria junto, não seria um exercício sádico. Acho que me devora a ideia da devolução. Eventualmente teu peso me rasgaria as coxas. Cintos marcando os espaços do corpo que poderiam ser estrangulados e, visível para além da gola, público no pescoço, a couraça de uma coleira nos armando com um compromisso.

    Veja, ainda me envenena a mente tais fantasias, que se devotam numa conversa de punições. Cilícios, deslizes e estrangulamentos em camisas brancas passadas e abotoadas. Foram más conversas, más percepções. Não importa, não daria em nada mesmo. Porém gostei de saber e me mordi ao, propositalmente, ensanguentar odiosamente a sua moralidade. Porque não era uma balança até então, não íamos e voltávamos compensando o equilíbrio. Era um bloco maciço, um peso de porta.


3. O jeito como ele limpava, com muito cuidado, aquelas pedrinhas, passando a escovinha velha em cada curva ou reta e jogando a poeira para fora. Fazia isso girando, puxando a blusa alongada pelo tempo a fim de cobrir a divisão dos montes. Era uma cena cômica. Eu pensava: o que é que ele estava com tanta propriedade cobrindo? De quem ele escondia tamanho tesouro? Mesmo entre nós não havia exatamente como olhar. Ele estava sempre muito ajoelhado e eu aqui de longe, por detrás das janelas, acompanhando abestado. Seria do Senhor, Grande Deus? Que graça esta. Cobria seu cofrinho de Cristo, do Grande Olho, daquele que olha lá dos céus. E talvez estivesse certo na sua oferta de modéstia. Não queria dividir o pequeno termo de corpo, a possível sensualidade. Tampouco ofender, pelo comum ao sujo, ao gasto, ao mau visto - a bunda! - do onipotente Senhor que nos guarda.


4. Ao respirar, o ar se contorcia com peso dentro dos pulmões, num exercício de querer expandir e estourar aquela carne, sem valorizar qualquer outro caminho para fora do corpo. Todavia era pertinente respirar. Bater o coração. Continuar vivendo aquela vida sem propósito. Quem define o propósito da vida? Se perguntou e a voz ressoou sem resposta. No entanto o cérebro era histérico e sem uma resposta procurava outra pergunta. Era um caminho de caminhos sem saída. Assim, ele abaixou a cabeça, a apoderou com a mão dominante e se perguntou: que rumo tomo? Ambas as perguntas pareciam exigir a intervenção de alguém.

    O som do cérebro, uma de suas lâminas, às vezes era como vassouras varrendo ruas de pedra.

 

5. Quando eu estiver morto, me enterre com algo para ouvir. Fones de ouvido e um álbum selecionado tocando indefinidamente. O espírito escuta? O corpo ainda compreende os sinais de vida lá fora? Não sei, ainda estou vivo, vivo demais para te responder. Faça suas perguntas, porém. Posso ouvi-las. Quero, quero sim. Me dê a mortalha, me dê a gaze para morder durante o ataque berrante convulsionado no chão. Não é mais isso? Mudou? Entendo... Cubra o chão, acoberte a cabeça e a deixe bater. Faça silêncio enquanto golpeio a cabeça, enquanto o recheio da torta está quente e macio (deixe a música para depois!). Se você fatiar, escorrerá no prato. Que linda visão! A nuvem anã de vapor que se abre como cortinas que preparam a imagem do desejo para as cerejas que descem o córrego na massa dourada que é úmida por dentro e prestes a esfarelar por fora.


6. Sejam comigo pessoas macias. Não quero mais o toque áspero. Sou, já, de pedra. Teu toque estriado me tirará uma fatia. Fina fatia microscópica, de breve a breve poeira. O que há dentro de mim afinal? Veia e sangue? Linfa e plasma? Puro vazio. Sou um ser quente, mas frio diante da água que me cerca. Ela também me arranca, de maneira carinhosa, fios e tecidos.

    Sejam comigo pessoas macias, peço por favor e tenho medo de ser ignorado neste pedido. Não cruze minha linha santa. Não invada este território. Há na placa sobre a porta de madeira (nova) agarrada ao muro (que se despedaça): não entre, não cruze, não jogue lixo. É recente – somente este histórico engraçado. Como cuidarão deste lote? São as regras para todos ou a ordem pula aquele que prega a placa na madeira? Quiçá o mundo seja um benefício imediato para um e todos os outros rodando o entorno pela conformidade. Não tem como fugir. Vá contra a lei da fúnebre maioridade e levarás um soco no olho. Perderás os dentes. Perderás o limite que não queres que cruzem. Cruzarão? Se cruzarem, tomarão prazer? Sentirão o calor da pedra afogada? Esperarei por respostas. Aqui apenas anseio por cenários. Esperarei por saber de meu plasma, sangue, veias, face. Debaixo da face deve haver outra face. Esta talvez me revele para o mundo. Esta talvez me revele já no fundo d'água, mergulhado, abaixo da linha do mar, onde meu ventre estará frio diante da água que me cerca. Em outro mundo, outro mundo.


7.  Gargalhadas natas e outras nervosas se uniam em uma única erupção.

    Caiu feito um tomatinho muito maduro e se esborrachou no chão. Morreu a granular criatura e aos nossos olhos que observavam de longe só sobrou o dó para guardar na língua e saborear em alguma história com aqueles que não estivessem presentes no espetáculo.

    Era fúnebre, certamente, mas era este o propósito. Alguns morriam com a espada na garganta, outros apunhalados dezenas de vezes. Este morreu se arremessando de um dos balcões que rodeavam o pátio, do cômico ao terrível.


8. Não quero mais falar sozinho. Este baralho de palavras, assuntos, vontades vociferadas existe às pampas porque não é gasto, e mereço gastá-lo. Gaste-o e me gaste se puder. Todo o oco. Todo o núcleo pesado de líquido arenoso, grosso nas colheradas. Retire-o. Retire-o com todo o esforço que tens. Verás as diferentes camadas, o pouco que não se mistura por completo. Raspe o conteúdo deste planeta e o deixe à espera no universo.

    Seja honesto, arquiteto dos ares. Esteja, acima de tudo, confortável comigo. Compartilhemos prazeres. Observai-me no meu prazer do diálogo. Permita que eu encontre cada casa vaga agora que deixei de estar muito cheio. Como um colar de miçangas, arranjarei todas sob um mesmo fio de nylon.


9. O lindo corpo inflado, macio e leitoso, brilhante do óleo que discernia o calor do verão. Era um espetáculo, cada coisa em seu lugar. Milimetricamente. O vento feroz da noite praiana mantinha o corpo frio, que mesmo resplandecendo as pequenas partículas de brilho encontradas no espaço e atracadas na pele em grudes maternais, uniam-se para a cena perfeita da musa matriz que me seduzia com olhos de histórias longínquas e conhecimentos passados. A carne iria eventualmente se entrosar nos cubos privados, enquanto sob a lua como claraboia vivíamos uma dança conjunta e desajeitada. O corpo delicioso de sobremesa ao passo da dança, sem pensamentos, sem remediação; a mão carregando a lata de cerveja quente e amassada com seus poucos mililitros que pediam socorro. A falta de ângulo, a chave tilintando. Funcionava, porém. Pelo sobre pele nua. Qual era o sentimento? O combustível? Não me via lobo e nem me faria voraz, entretanto acendia uma bruxuleante flâmula de farol em noite enevoada; libido ocupando o coração como gordura, no aguardo para desatar em satisfação.


10. Aconteceu. Aconteceu de novo e novamente aconteceu comigo sozinho, gerando aos entraves o potencial de vocês como sempre me desacreditarem.

    Fiquei absorto. Minha mente vagueou e perdi o encargo dos acontecimentos. Tinha de fazer algo e, por me perder, algo importante e necessário para os acontecimentos adiante foi recusado. Perdido. Destruído. Destituído. Assim tive de começar tudo novamente e me quebrou como a escultura de açúcar que não está no ponto de total solidez. Cacos e cacos, sem o demérito de ferir feito vidro. É só açúcar.

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Correio

1. Eu tenho lido e pesquisado. Escrito: pensamentos, textos, artigos. Descrito e revisto. Desenhado, pintado. O mínimo e o máximo. E continuo como um rio sem movimento, com foz no eterno aguardo do deságue. Não estou mais esperto e mantenho meu desgaste constante de estar muito certo do meu não saber vagar por aí. Não calha seguir, apesar de seguir seguindo. Bem...

    - Não. Não estou lidando com nada... Nada mesmo, nenhum peso sobre os ombros. Porém... Me deixa atento. Este nada muito significa. - a metade do copo preenchida com ar assusta e fascina.

    Quero me despedir deste planeta. Adoro a hora de ir embora. Você se despede de casa para ir à rua, se despede da festa quando se está cheio. Estarei cheio no fim dos tempos? Minha visão de despedidas é animadora e não me despeço dela por outra que não contenha sucessos absolutos. A dúvida rodeia, porém não entra. Se entrar, irá se despedir de seu espaço, sua forma e seu corpo, pois aqui será exposta como uma certeza. Este barco navega sobre o véu plástico. Balança e chacoalha sem medo de afundar. Gira às tonturas, entretanto sem a realidade do medo-piloto que só o mar pode suportar. Este oceano é puramente construído numa linda maquete que pode ser vista de fora e por enquanto só pode ser vivida por mim. Uma hora, quem sabe, abrirei o estúdio ao público. Talvez então este barco sobre o plástico não será novidade, mas a porta aberta convidará o outro a despedir-se de fora para entrar.

 

2. No ensino fundamental gostava de uma garota que me lembrava Marisa Orth. Não a apreciavam pela beleza, o que era uma grande incógnita para mim. Muito menos, ela não me apreciava, embora em algum momento de extrema dúvida e necessidade trocamos nossos números de celular e passamos a comunicar via textos curtos. Era limitada a situação. Diferente dos outros, não tinha a liberdade imaginária (imaginária, pois imaginava que eles tinham) de trocar infinitas palavras nos sistemas recém atribuídos aos miúdos de nossas idades que burlavam o pano corporativista que vigiavam seu funcionamento. Bem, independentemente das independências da memória, brevemente teci um relacionamento de palavras. Fui um jovem avante e vejo com carisma o quanto isso não significa nada.

    Pois ela me lembrava Marisa Orth e isso não era deliciado pelos outros rapazes. Que pena. Deveriam ter olhos atentos. Toda essa conversa agora é feita sem nenhum teor proibitivo, apenas relaciono o reconhecimento da beleza das faces conhecidas. Devo admitir, no entanto, o furor daquela época. Pezinhos vibrantes na troca maquinal de mensagens, todas mal interpretadas na promessa de pequenos romances. Hoje, no entanto, avalio a outra face da rejeição de nossa Orth-sósia que não golpeava corações com flechas de pedra por suas beirais semelhanças à estrela da tevê. A gente sabe que na vida adulta tudo se revela. A pequena beleza se magnifica. A grande feiura encontra seu lar. Alguém com apetite irá desmontar a mandíbula em prazer, revelando caninos aflitos com gotas gordas de saliva almejando o corpo-refeição. Come-se, é comido, acena para a sobremesa e repete a refeição.


3. Ele olhou para o céu por um momento, já cansado com a vaguidão daquele seu dia; seus sentimentos descoordenados como notas átonas de um bloco sinfônico que fora destruído e reconectado; pensava se havia porquês para ser complacente sem desistir do combate - ou era a única função da guerra debulhar o homem à sua matriz?

    Acima, a figura do anjo o olhava de volta. Vestia armadura feito ele, sem suor ou tremor diante do peso. Mesmo que não pudesse conjugar naquele instante como podia carregar aquelas cotas de malha e placas de ferro decoradas com pequenos nós de ouro, tinha a certeza de que aquela criatura flutuante não dispunha de esforços físicos em sua existência.

    O anjo falou e ele ouviu, apesar da reação ou da mensagem não moverem os lábios de ambos:

    - Que desespera a noite que cobre o reino. Que desespera a mente que te cobre homem. Que exerça a tua dança, no passo célere que indico, no ciclo contínuo da guerra que funda este povo.

    Não havia temor, mas desgosto, pois a mensagem era clara como todos os anúncios dos céus e não havia inaptidão para discordar: iria lutar a guerra para sempre, não porque há valor nesta, mas porque assim foi escolhido.


5. Tornar-me-ei concreto. Muralha, paredes, pistas de skate. A mão que lavra passará sobre mim, interagirá e retornarei com um frio instante. Não posso muito oferecer além do espaço, mas no espaço nos fazemos gente. Oferecerá seus pés sobre solas, sob trajes e serei caminho para fugir, correr, largar (...).

    Não, não se faça cíclico. Faça um caminho para frente, em direção ao futuro. Sê caminho e você por mim encontra o desconhecido. Sê plano e por mim você atravessa a descoberta. Não seremos mediados, pois correntes. Velejo sólido, sou concreto.


6. Naquela noite ele tocou em um assunto que reconheci, porém não prestava atenção diante da chuva para policiar minha resposta:

    - O molestador?

    - É... - soltou como vapor disperso, entre risadinhas desconfortáveis.

    Ele reconhecia a pessoa e a sentença, pelo visto, e me faria em frente ponderar se isso também o incomodava (numa memória sacrificante como garras de aço sobre a pele), entretanto voltou ao ponto inicial, o outro professor. Disse algo do tipo:

    - Ah, ele é joia! Aprendi muito com ele.

    A conversa não durou muito. Não sobre esse assunto, pelo menos, apesar da natureza entrecortada de todos aqueles picos de palavras na madrugada. Estávamos separados. Um grupo, uma dupla, alguns sozinhos. E mesmo o mais sóbrio daqueles só poderia ponderar sobre os acontecimentos tecidos em seus breves momentos de solidão.

    Pensei, em algum instante: teria aprendido mais naquelas aulas se não estivesse envenenado pelos meus próprios propósitos individualistas? Muito gostaria, é claro, como todos os que se veem no reflexo d'água ponderando a nova mente no corpo da lembrança. Contudo... Não me valeria o esforço de mudar vírgulas. Foi como tinha de ser. Se foi ruim - até onde me coube -, foi por me caber a atuação. O ator em seu eterno progresso, talvez. Mas essa visão que ocupa a córnea de sangue... Bem, que tenha cuidado. Não esqueça, pássaro, que a sociedade não é só você; tampouco que por não prestar atenção esteve sendo autêntico. És autêntico em sua falsidade. Todos somos. Dançando com asas cheias de óleo à procura do encantamento externo. Não se preocupe. Faça o externo como quiser. O reflexo de volta para o quarto, até. A janela, a folha, a outra andorinha (também).


7. Meus feromônios se transformaram radicalmente. Minha fragrância corporal mudou, de um tom terroso e fresco, harmoniosamente salgado (como grama amassada em sal e carvão) para algo doce ralo, desconexo e glicerinado, como o suco de uma laranja Serra D'água e sabonete neutro na pernoite.


8. Estou sentindo o espírito deixar o corpo... Não, não ria da minha descrição. É como se... Na frente dos meus olhos houvesse uma lente refrativa. Tudo um pouco mais distante de mim, a milésimos de segundos do toque. Temo que irá piorar. Mais demora e mais tempo. Maior distância. Menos noção do meu eu sobre meu próprio corpo, abarrotado pela ideia de ser uma espécie de luz ou de matéria atracada de muitos blocos leves em conjunto uníssono, que comanda um maquinário.

    - Quando me toco, - prossegui, as falas curtas e os pensamentos já mesclados num falso sincero monólogo - percebo-me menos.


9. O mundo irá me bater. Sem dó. Somente lutas covardes. Apanharei sorrindo, porque é belo o sorriso ensanguentado. Apanharei calmo, pois odioso me moverei demais e baterei por conta própria nas paredes. Apanharei em sequência, dias e dias, até que faça sentido o ritmo e eu sinta falta disso quando faltar. Irá faltar, e abrirá a porta da cela o agente que carrega a solidão. A noite vagueará na memória, espero que positivamente, contudo não posso descrever meu futuro com certeza. Espero que sim. Ó como espero. E espero que se repita, mãos frias sobre o vento, com olhos fixos naquele que me desejou por um instante.


10. Não. Pensei que era assim. Que se tomava a direção do carro colocando a mão no volante. Que se propunha a chegar em algum lugar e então se chegava. Não imaginei a estrada como mundo. Que no trajeto tinha resto. Tinha gente, tinha carro, tinha gente dentro de carro. Que a estrada era viva e a vida nem sempre era bonita. Nem todo mundo é atento e nem todo motorista dirige com a mão no volante. Porém eu dirigia, e vendo um mundo maior passei a dirigir olhando tudo. Olhei demais, olhei pra lá. Olhei até perder o horizonte. Perder a direção. E ser assim parte daquele resto desatento, que provoca acidente. Que acidentava a rota. Que roteava a norma.