1. Eu tenho lido e pesquisado. Escrito: pensamentos, textos, artigos. Descrito e revisto. Desenhado, pintado. O mínimo e o máximo. E continuo como um rio sem movimento, com foz no eterno aguardo do deságue. Não estou mais esperto e mantenho meu desgaste constante de estar muito certo do meu não saber vagar por aí. Não calha seguir, apesar de seguir seguindo. Bem...
- Não. Não estou lidando com nada... Nada mesmo, nenhum peso sobre os ombros. Porém... Me deixa atento. Este nada muito significa. - a metade do copo preenchida com ar assusta e fascina.
Quero me despedir deste planeta. Adoro a hora de ir embora. Você se despede de casa para ir à rua, se despede da festa quando se está cheio. Estarei cheio no fim dos tempos? Minha visão de despedidas é animadora e não me despeço dela por outra que não contenha sucessos absolutos. A dúvida rodeia, porém não entra. Se entrar, irá se despedir de seu espaço, sua forma e seu corpo, pois aqui será exposta como uma certeza. Este barco navega sobre o véu plástico. Balança e chacoalha sem medo de afundar. Gira às tonturas, entretanto sem a realidade do medo-piloto que só o mar pode suportar. Este oceano é puramente construído numa linda maquete que pode ser vista de fora e por enquanto só pode ser vivida por mim. Uma hora, quem sabe, abrirei o estúdio ao público. Talvez então este barco sobre o plástico não será novidade, mas a porta aberta convidará o outro a despedir-se de fora para entrar.
2. No ensino fundamental gostava de uma garota que me lembrava Marisa Orth. Não a apreciavam pela beleza, o que era uma grande incógnita para mim. Muito menos, ela não me apreciava, embora em algum momento de extrema dúvida e necessidade trocamos nossos números de celular e passamos a comunicar via textos curtos. Era limitada a situação. Diferente dos outros, não tinha a liberdade imaginária (imaginária, pois imaginava que eles tinham) de trocar infinitas palavras nos sistemas recém atribuídos aos miúdos de nossas idades que burlavam o pano corporativista que vigiavam seu funcionamento. Bem, independentemente das independências da memória, brevemente teci um relacionamento de palavras. Fui um jovem avante e vejo com carisma o quanto isso não significa nada.
Pois ela me lembrava Marisa Orth e isso não era deliciado pelos outros rapazes. Que pena. Deveriam ter olhos atentos. Toda essa conversa agora é feita sem nenhum teor proibitivo, apenas relaciono o reconhecimento da beleza das faces conhecidas. Devo admitir, no entanto, o furor daquela época. Pezinhos vibrantes na troca maquinal de mensagens, todas mal interpretadas na promessa de pequenos romances. Hoje, no entanto, avalio a outra face da rejeição de nossa Orth-sósia que não golpeava corações com flechas de pedra por suas beirais semelhanças à estrela da tevê. A gente sabe que na vida adulta tudo se revela. A pequena beleza se magnifica. A grande feiura encontra seu lar. Alguém com apetite irá desmontar a mandíbula em prazer, revelando caninos aflitos com gotas gordas de saliva almejando o corpo-refeição. Come-se, é comido, acena para a sobremesa e repete a refeição.
3. Ele olhou para o céu por um momento, já cansado com a vaguidão daquele seu dia; seus sentimentos descoordenados como notas átonas de um bloco sinfônico que fora destruído e reconectado; pensava se havia porquês para ser complacente sem desistir do combate - ou era a única função da guerra debulhar o homem à sua matriz?
Acima, a figura do anjo o olhava de volta. Vestia armadura feito ele, sem suor ou tremor diante do peso. Mesmo que não pudesse conjugar naquele instante como podia carregar aquelas cotas de malha e placas de ferro decoradas com pequenos nós de ouro, tinha a certeza de que aquela criatura flutuante não dispunha de esforços físicos em sua existência.
O anjo falou e ele ouviu, apesar da reação ou da mensagem não moverem os lábios de ambos:
- Que desespera a noite que cobre o reino. Que desespera a mente que te cobre homem. Que exerça a tua dança, no passo célere que indico, no ciclo contínuo da guerra que funda este povo.
Não havia temor, mas desgosto, pois a mensagem era clara como todos os anúncios dos céus e não havia inaptidão para discordar: iria lutar a guerra para sempre, não porque há valor nesta, mas porque assim foi escolhido.
5. Tornar-me-ei concreto. Muralha, paredes, pistas de skate. A mão que lavra passará sobre mim, interagirá e retornarei com um frio instante. Não posso muito oferecer além do espaço, mas no espaço nos fazemos gente. Oferecerá seus pés sobre solas, sob trajes e serei caminho para fugir, correr, largar (...).
Não, não se faça cíclico. Faça um caminho para frente, em direção ao futuro. Sê caminho e você por mim encontra o desconhecido. Sê plano e por mim você atravessa a descoberta. Não seremos mediados, pois correntes. Velejo sólido, sou concreto.
6. Naquela noite ele tocou em um assunto que reconheci, porém não prestava atenção diante da chuva para policiar minha resposta:
- O molestador?
- É... - soltou como vapor disperso, entre risadinhas desconfortáveis.
Ele reconhecia a pessoa e a sentença, pelo visto, e me faria em frente ponderar se isso também o incomodava (numa memória sacrificante como garras de aço sobre a pele), entretanto voltou ao ponto inicial, o outro professor. Disse algo do tipo:
- Ah, ele é joia! Aprendi muito com ele.
A conversa não durou muito. Não sobre esse assunto, pelo menos, apesar da natureza entrecortada de todos aqueles picos de palavras na madrugada. Estávamos separados. Um grupo, uma dupla, alguns sozinhos. E mesmo o mais sóbrio daqueles só poderia ponderar sobre os acontecimentos tecidos em seus breves momentos de solidão.
Pensei, em algum instante: teria aprendido mais naquelas aulas se não estivesse envenenado pelos meus próprios propósitos individualistas? Muito gostaria, é claro, como todos os que se veem no reflexo d'água ponderando a nova mente no corpo da lembrança. Contudo... Não me valeria o esforço de mudar vírgulas. Foi como tinha de ser. Se foi ruim - até onde me coube -, foi por me caber a atuação. O ator em seu eterno progresso, talvez. Mas essa visão que ocupa a córnea de sangue... Bem, que tenha cuidado. Não esqueça, pássaro, que a sociedade não é só você; tampouco que por não prestar atenção esteve sendo autêntico. És autêntico em sua falsidade. Todos somos. Dançando com asas cheias de óleo à procura do encantamento externo. Não se preocupe. Faça o externo como quiser. O reflexo de volta para o quarto, até. A janela, a folha, a outra andorinha (também).
7. Meus feromônios se transformaram radicalmente. Minha fragrância corporal mudou, de um tom terroso e fresco, harmoniosamente salgado (como grama amassada em sal e carvão) para algo doce ralo, desconexo e glicerinado, como o suco de uma laranja Serra D'água e sabonete neutro na pernoite.
8. Estou sentindo o espírito deixar o corpo... Não, não ria da minha descrição. É como se... Na frente dos meus olhos houvesse uma lente refrativa. Tudo um pouco mais distante de mim, a milésimos de segundos do toque. Temo que irá piorar. Mais demora e mais tempo. Maior distância. Menos noção do meu eu sobre meu próprio corpo, abarrotado pela ideia de ser uma espécie de luz ou de matéria atracada de muitos blocos leves em conjunto uníssono, que comanda um maquinário.
- Quando me toco, - prossegui, as falas curtas e os pensamentos já mesclados num falso sincero monólogo - percebo-me menos.
9. O mundo irá me bater. Sem dó. Somente lutas covardes. Apanharei sorrindo, porque é belo o sorriso ensanguentado. Apanharei calmo, pois odioso me moverei demais e baterei por conta própria nas paredes. Apanharei em sequência, dias e dias, até que faça sentido o ritmo e eu sinta falta disso quando faltar. Irá faltar, e abrirá a porta da cela o agente que carrega a solidão. A noite vagueará na memória, espero que positivamente, contudo não posso descrever meu futuro com certeza. Espero que sim. Ó como espero. E espero que se repita, mãos frias sobre o vento, com olhos fixos naquele que me desejou por um instante.
10. Não. Pensei que era assim. Que se tomava a direção do carro colocando a mão no volante. Que se propunha a chegar em algum lugar e então se chegava. Não imaginei a estrada como mundo. Que no trajeto tinha resto. Tinha gente, tinha carro, tinha gente dentro de carro. Que a estrada era viva e a vida nem sempre era bonita. Nem todo mundo é atento e nem todo motorista dirige com a mão no volante. Porém eu dirigia, e vendo um mundo maior passei a dirigir olhando tudo. Olhei demais, olhei pra lá. Olhei até perder o horizonte. Perder a direção. E ser assim parte daquele resto desatento, que provoca acidente. Que acidentava a rota. Que roteava a norma.